Abertura

Oferecem-se para testar medicamentos, melhoram a sua saúde e a dos outros

6 abr 2023 20:00

Assinala-se amanhã o Dia Mundial da Saúde e o nosso jornal foi conhecer de perto como funcionam os ensaios clínicos que o Centro Hospitalar de Leiria iniciou há duas décadas e que o tornam numa referência da investigação

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Ensaios clínicos no CHL
Ricardo Graça
Daniela Franco Sousa

Avançou com o primeiro ensaio clínico em 2002 e foi sobretudo a partir de 2014, quando constituiu o seu centro de investigação, que o Centro Hospitalar de Leiria (CHL) aumentou esta actividade de forma significativa.

Ao longo dos últimos oito anos, fruto do empenho de médicos e de mais de 200 doentes, que se voluntariaram para testar fármacos, o CHL tornou-se numa referência neste género de investigação, destacando-se entre os hospitais não universitários, nos quais grande parte deste tipo de pesquisa se processa.

Só no ano passado, 47 doentes acederam a testar medicamentos, capazes de fazer a diferença na sua saúde e na dos outros. Neste momento, entre outros, estão a decorrer no CHL ensaios- clínicos estudando novos anticoagulantes, novos fármacos para o colesterol e alguns estudos na área da esclerose múltipla.

João Morais, coordenador do centro de investigação do CHL, explica que se faz cada vez mais investigação nos hospitais, mesmo naqueles que não são académicos. “Um médico não deve servir apenas para tratar doentes, deve ter igualmente responsabilidades de ensino e de investigação.”

Uma das vertentes dessa investigação são os chamados ensaios clínicos, seja de dispositivos médicos, seja de fármacos. E no caso do CHL muito se tem feito ao nível da investigação de fármacos, nota o coordenador. Na medicina moderna, os fármacos só chegam ao mercado depois de passarem por um extenso e rigoroso processo de investigação, que obedece a várias etapas.

Num primeiro momento, “a grande preocupação é perceber se o fármaco é seguro, ainda antes de termos a certeza que é eficaz. A segurança domina a investigação nos dias de hoje”.

João Morais admite que “nada disto é absoluto e nada disto é 100% garantido”, na medida em que, na fase de ensaios clínicos, se podem testar 10 ou 20 mil pacientes e, quando chega ao mercado, o fármaco pode ser usado por milhões. “Há coisas que podem acontecer e que não aconteceram nos ensaios”, reconhece. É por isso que tem de existir este escrutínio, com informação “muito precisa e rigorosa para demonstrar que o fármaco é seguro”, antes de se avançar para testes de eficácia.

Para averiguar se o fármaco é seguro começa-se por realizar estudos pré-clínicos, em animais. Se o medicamento se comporta bem, então avança-se para estudos clínicos, em pessoas. A fase 1 é de teste em pessoas saudáveis, que se voluntariam para usar o fármaco. Geralmente são ensaios feitos fora dos hospitais, com pessoas recrutadas em locais vários, por exemplo nas universidades.

Nos Estados Unidos, são frequentes os anúncios de jornal para recrutamento de interessados em participar, a troco de dinheiro. Mas em Portugal e na Europa em geral, todo o processo assenta em voluntariado, frisa João Morais. Verificada a segurança do fármaco em pessoas sãs, passa-se à fase 2 do ensaio clínico, que é testá-lo em pessoas doentes, um tipo de investigação que o CHL também já realizou. “Habitualmente, são estudos feitos numa população reduzida, pessoas muito seleccionadas, doentes que são muito acompanhados”, que são observados e fazem análises com muita frequência, realça o coordenador.

Também eles são voluntários, a quem tudo é minuciosamente explicado. O paciente tem de dar o seu consentimento, sempre com a garantia que pode abandonar o ensaio quando quiser. “Ninguém é obrigado a participar e a pessoa tem de se sentir completamente tranquila para saltar fora se assim quiser decidir”, frisa João Morais, acrescentando que todos estes ensaios são cobertos por seguros.

“Ninguém está à espera de problemas, mas, se tiver, há que precaver.” A partir do momento em que o estudo de fase 2 indica que o fármaco é seguro, passa-se à testagem junto de milhares de doentes, em populações diversificadas, envolvendo vários países, com o objectivo de perceber se também é eficaz. Estudos de fase 3 têm sido os mais comuns no CHL.

Nos fármacos completamente novos, os quais não têm comparador, os ensaios são habitualmente feitos contra-placebo, que não é mais do que um produto inerte, permitindo assim que não se saiba quais as pessoas que tomam a substância em investigação. De forma aleatória são incluídas pessoas que estão a tomar o medicamento e outras que estão a tomar placebo, sendo que nem os doentes nem os médicos sabem quem toma o quê. Este rigor da chamada dupla ocultação permite que nem médico nem doente sejam sugestionados pelo que se toma e assim permitir uma avaliação isenta, sublinha João Morais.

Mas se a participação em ensaios não dá dinheiro, o que ganham os doentes em participar? “Estamos a oferecer cuidados médicos de excelência. Um doente que participa num ensaio clínico é um doente muito bem tratado. Ao ponto de, mesmo quando está a tomar o placebo, que não é mais do que um comprimido de farinha, manifestar um comportamento melhor”, nota o coordenador.

“Porque o rigor é muito grande, e não só porque tem a melhor terapêutica, mas também porque é muito acompanhado.” Ao contrário do que acontecia no passado, é hoje residual o número de pessoas que, convidadas a participar, declinam por medo ou desconfiança. “A percentagem de pessoas que hoje adere está muito próxima dos 100%”, expõe o coordenador, salientando que se alguns rejeitam é por uma questão de logística.

“Temos ensaios clínicos, durante os quais, ao longo de dois meses, o voluntário tem de se deslocar ao hospital todas as semanas e nem sempre isto é fácil, em especial para as pessoas mais idosas”, exemplifica João Morais. No entanto, realça, os custos de deslocação, mediante comprovativo, podem ser reembolsados.

Além de novos fármacos, também é usual testar novas utilizações para um fármaco que já existe no mercado. Também esta nova aplicação não avança se não for sujeita a um escrutínio deste género. “Um fármaco testado e aprovado para baixar a tensão arterial não pode ser usado com outros objectivos sem se sujeitar ao escrutínio dos ensaios clínicos. Um fármaco que é seguro para tratar uma determinada doença pode não o ser quando em confronto com outra doença.”

Terminados os ensaios que analisam a segurança e eficácia, os resultados têm de ser aprovados pelas agências reguladoras, seja a Agência Europeia do Medicamento seja a norte-americana FDA (Food and Drug Administration). Só depois desta aprovação é apresentado às diferentes autoridades nacionais (no caso de Portugal ao Infarmed), com a intenção de comercializar o produto. Por vezes, até se considera que um fármaco é clinicamente interessante, mas financeiramente também tem de o ser. “O grande problema do acesso à inovação é que é muitas vezes dificultada por questões de natureza económica”, observa João Morais.

Além destes estudos, o CHL participa em ensaios de iniciativa do investigador, que correspondem à chamada fase 4. Por serem estudos caros, dificilmente são feitos por um só hospital, mas através de consórcio ou de um conjunto de centros de investigação. “Há ensaios que chegam a custar mais de um bilião de euros, que envolvem mais 20 mil doentes pelo mundo”, diz. O CHL promove ainda os chamados “estudos sobre o mundo real”, criando bases de dados onde se insere a informação sobre o comportamento dos doentes, que dão origem a muitas apresentações e publicações. Há também teses de mestrado e de doutoramento. O CHL tem mais de 20 profissionais doutorados ou em curso de doutoramento o que, para um hospital não académico, “é uma massa crítica muito importante”, reforça o coordenador.

Resultado de esforço e carolice
Apesar de terem vindo a crescer muito na área dos ensaios clínicos, muitos hospitais portugueses ainda não têm uma organização interna que lhes permita apresentar melhores resultados. As estruturas dirigentes reconhecem que a investigação é muito importante, desde que não seja impedimento para assegurar outras actividades, designadamente as consultas. “Não temos, como o resto da Europa tem, um tempo protegido para investigação, no qual o médico sabe que tem um determinado número de horas no seu horário, dedicadas à investigação”, constata João Morais.

Por isso, toda esta actividade acaba por se fazer à custa de um esforço adicional dos médicos, muitas vezes fora de horas e “com uma dose de carolice muito grande”.

Entre pares, o CHL tem sido dos que mais ensaios e doentes tem recrutado devido à organização que acompanha todo este processo. Se um hospital aceita realizar um estudo e depois não inclui o número de voluntários que definiu à partida, ou é lento na apresentação das conclusões, provavelmente não será escolhido pelo promotor para um novo ensaio.

Para o CHL, os ensaios geram já uma receita “considerável”, dinheiro que se destina a promover a investigação, distribuindo parte dele aos investigadores, ao serviço onde se realiza o estudo, à farmácia, sendo ainda parte dessa verba destinada ao chamado fundo de investigação. O hospital recebe apenas uma pequena parte da verba que o ensaio pode gerar. “Um doente voluntário num ensaio clínico deve pensar em si, mas deve também pensar nos outros, os quais um dia virão a beneficiar daquela investigação”, realça João Morais.

Alerta
Compra de fármacos online

Adquirir medicamentos através da internet “é um problema de saúde pública”, alerta João Morais. O médico tem sido confrontado com doentes que lhe perguntam se podem tomar medicamentos, que compraram online, e cujo frasco nada diz sobre a proveniência nem sobre os compostos do fármaco. “Não temos nenhuma garantia daquilo que está lá dentro e não temos nenhuma forma de reclamar. Um fármaco comprado na internet não nos dá qualquer garantia de segurança”, alerta o cardiologista, que acrescenta outros perigos aos quais os consumidores devem estar atentos. Refere-se aos chamados produtos naturais, também vendidos nas ervanárias, que, quando tomados com medicamentos podem causar reacções nos doentes. “Um produto natural não é inócuo. Se não, por que razão seria tomado?, questiona. “Da mesma maneira que não se deve tomar o medicamento prescrito ao vizinho”, observa João Morais.