Sociedade

Jorge Pina: “Tive de cegar para voltar a ver”

21 abr 2016 00:00

O atleta paralímpico cegou aos 27 anos, quando se preparava para tentar ser campeão do mundo de boxe.

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O constante sorriso nos lábios que evidencia sempre que fala prova que ganhou o título de uma das suas mais duras batalhas. Segunda-feira, dia 25 de Abril, vai tentar os mínimos para os Jogos Paralímpicos.

Um dia percebeu que ia ficar cego. Sentiu raiva ou frustração?
Um misto de tudo. Foi deparar-me com esta nova forma de ver, que não era a que tinha. Pensei, questionei- -me o porquê de me acontecer e por que é que me operaram tantas vezes, porque eu ainda via alguma coisa e as cirurgias foram-me reduzindo a visão. Foi um misto de raiva, de frustração e de pensamentos que me tentaram levar a sentir mal, mas rapidamente tive de trocar esses pensamentos para começar a pensar em coisas boas.

Que pensamentos eram esses?
Os maus pensamentos poderiam levar- me ao caos, ao abismo e a um mundo de frustração e depressão, que me levassem às drogas e ao álcool para esquecer e tentar tapar o buraco desse lado negro da minha vida. Podia ter-me levado a voltar para um caminho por onde já tinha passado. Os outros bons pensamentos, que fizeram mudar a minha maneira de pensar, foi pensar que ainda há muita coisa para acontecer, que há muito para além da cegueira e há uma nova maneira de estar, de viver, pensar e ver o mundo e a vida. Essa passagem, embora um bocado difícil, fez-me encontrar um novo Jorge.

Como ficou cego?
Estava a treinar em Espanha, a preparar- me para o campeonato do mundo de boxe, quando surgiram os primeiros sintomas. De repente comecei a ver ‘borbulhas’. Fui a uma consulta de oftalmologia em Espanha,mas o médico não me elucidou da gravidade do problema e continuei a treinar e a combater. Quando voltei a Portugal, fui ao médico e ele disse que tinha de ser operado de urgência, porque tinha feito um deslocamento da retina do olho esquerdo e sucederam- -se as cirurgias. A primeira não correu bem, porque a retina ficou vincada. Fiz outra cirurgia para retirar o vinco, mas não resultou. Fiz uma terceira cirurgia e acabei por perder a visão.

Por que sucedeu o deslocamento da retina?
Talvez por tanta coisa: esforço, treino, pancadas… Também não fui à procura de culpados para a minha cegueira. Fiz várias cirurgias e podia ter questionado os médicos do porquê de me operarem tantas vezes e do porquê de me operarem o olho quando eu ainda conseguia ver e escrever e acabei por sair pior do que entrei. Aceitei e fui à procura de alguma coisa que me trouxesse felicidade e me fizesse entender o sucedido.

E onde estava essa felicidade?
Na fé, no Deus desconhecido. Foi o meu Deus, que também é o Deus de todos. O Deus da humanidade, do amor, da paz, que não tem cor, não tem raça, não tem nome, não tem religião. É somente o amor, a partilha e o amar o próximo como a si mesmo. É essa fé e esse Deus que me têm ajudado a seguir o caminho que trilho para mim. A minha igreja é dentro de mim, é a minha consciência, são os valores e a ética. Isso é a minha religião. É o poder partilhar, ajudar os outros, de modo a que consigam ter um entendimento idêntico ao meu, ou seja, aceitar as coisas sem tentar ir ao encontro da explicação.

Já tinha essa fé ou ganhou-a com a cegueira?
Sempre fui muito beato. Os meus pais eram católicos, fui baptizado e fiz a primeira comunhão. Entro em qualquer igreja para rezar, sinto a fé de uma forma que não sei explicar, mas sinto que há alguma coisa em mim. Sei que há algo - que não sei o que é - que me ajuda. Chama-se fé, crença e acredito cegamente nessa fé. Não preciso de ver para acreditar.

Essa fé nunca ficou abalada?
Não. Só cresceu. Eu acredito que ela nos move. Acredito que é a fé que nos faz vencer obstáculos e ir atrás da transcendência e de querer fazer mais, mas sempre consciente da vida e do mundo. Vivi muito tempo a vida abundante, a vida do ego, a vida do dinheiro, do poder, das drogas, das mulheres. Agora quero viver a vida da humanidade, do amor, da partilha. E esse meu Deus e essa minha fé vêm ensinar-me a ser mais consciente, a não querer magoar os outros e a querer ajudá-los.

Sentiu medo?
Quando temos fé e acreditamos deixamos de ter medo. Lembro-me que quando ia para a última cirurgia estava com um terço na mão. Estava a rezar, a falar com Deus e estava confiante. Saí pior. Podia ter questionado: onde está o meu Deus?

Não se zangou com Deus?
Nunca me zango com Ele. É a vida. Ele dá-nos algo para nos tornar mais fortes. A vida tem-me ensinado que se plantarmos o bem colhemos o bem, se plantarmos o mal colhemos o mal. Tudo o que fazemos na vida reflecte-se em nós. Eu paguei o meu  passado. O presente é um presente de Deus.

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