Abertura

Da quarta classe ao curso de Medicina em duas gerações

2 jan 2020 00:01

Se no passado frequentar um curso superior estava reservado quase em exclusivo às elites, a democratização do ensino alargou essa possibilidade a classes menos favorecidas.

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Ana, Celeste e Rosa têm todas cursos superiores. As habilitações na família Duarte foram aumentando de geração para geração. Paula tem um CET, Patrícia é médica e António tem a 4ª classe
Ricardo Graça
Alexandra Barata

O JORNAL DE LEIRIA conta-lhe a história de três gerações de três famílias, em que a importância atribuída aos estudos teve uma influência determinante na qualidade de vida.

Portugal, anos 40. As famílias mais pobres viviam da agricultura de subsistência e da criação de animais, e a principal preocupação era matar a fome aos filhos. A escolaridade obrigatória era a 3ª classe e o estudo não era valorizado, porque as crianças representavam mais braços para trabalhar no campo, ou para tomar conta dos irmãos.

Celeste Pedrosa, hoje com 78 anos, quebrou este ciclo, ao ser a única professora primária da sua geração, da aldeia da Bouça, Colmeias, em Leiria. “A minha mãe ia trabalhar para o campo e eu ia atrás do meu irmão mais velho para a escola, para brincar com as meninas”, conta Celeste.

Quando as aulas começavam, punha-se a espreitar à porta. Acabou por ser convidada a juntar-se à turma do 1º ano. Aos 6 anos, já sabia ler e escrever. O pai soube dos feitos da filha pela professora e acordaram dizer que tinha aprendido através do ensino doméstico, para poder realizar a prova final do 1º ano, à semelhança dos outros alunos.  Aos 9 anos, Celeste já tinha concluído a 4ª classe, mas teve de deixar de estudar.

“Éramos três filhos e o meu irmão mais velho estava a tirar o 5º ano em L eiria, na única turma de todo o concelho, onde estudavam 35 alunos. Os meus pais pagavam 500 escudos por estar lá hospedado, o que era um balúrdio”, explica.

“Pôr os dois a estudar em Leiria era impossível, pois vivíamos da agricultura de subsistência.”

Consciente das dificuldades, disse aos pais que não queria estudar. Entretanto, o irmão mais velho concluiu os 6º e 7º anos, em Coimbra, e entrou na Academia Militar. O irmão mais novo também continuou a estudar.

Transportes impulsionam estudos

A oportunidade de Celeste voltar à escola surgiu quando tinha 17 anos. “Disseram aos meus pais que podia estudar como adulta, desde que estivesse empregada, e que só tinha de pagar a quota do sindicato para ter o estatuto de estudante-trabalhadora”, recorda. Após uma paragem de nove anos, concluiu os 5º, 6º, 7º, 8º e 9º anos em três anos, e c andidatou-se a exame para tirar o curso do Magistério Primário. Para tal, foi determinante terem passado a existir transportes públicos entre Colmeias e Leiria.

“A partir daí, muita gente começou a estudar.” “A minha mãe é que moveu tudo. Sabia que estudando ia ter uma vida melhor”, afirma Celeste.

Contudo, o salário era tudo menos atractivo. Ganhava 1700 escudos, mas pagava mil escudos pelo passe do autocarro, para ir dar aulas. Para evitar essa despesa, era comum as professoras primárias morarem nas aldeias onde davam aulas. “Nos primeiros anos, houve uma certa desconsideração, porque ganhávamos menos do que um pedreiro”, observa.

“Mas com os estudos ficávamos com outra abertura para o mundo.” A diferença entre a qualidade de vida de Celeste e dos amigos, familiares e vizinhos da Bouça, onde passa grande parte do tempo a cultivar a terra e a tratar dos animais, é notória. “Hoje, muitas vezes, olho para as pessoas da minha idade e vejo para o que estava guardada se não tivesse estudado. Custa ver que não têm o suficiente para se sustentarem”, lamenta.

“Alguma vez na vida pensei que ia ter tudo o que tenho? Casa, dois carros, electrodomésticos, dar carro aos meus três filhos e ajudá-los a comprarem casa? Nunca.”

Ginástica mental

João Antunes, 73 anos, também é o único do grupo de amigos de infância com curso superior. Na altura, vivia no Zambujal, perto de Loures. “Apenas uma minoria tirou a 4ª classe”, constata. João teve o privilégio de poder prosseguir os estudos e tirar o curso de Engenharia, ramo de Termodinâmic a, no Instituto Superior Técnico. Filho único, João conta que a mãe era analfabeta e doméstica e que o pai tirou o 5º ano enquanto trabalhava.

“Era muito competente e determinado e eu queria seguir as pisadas dele”, afirma. O cumprimento do serviço militar obrigatório na Força Aérea, aos 19 anos, também o despertou para a vontade de interpretar certos fenómenos, sobre os quais não tinha conhecimentos, como o atrito. “Estudar foi uma necessidade que se criou em mim”, explica.

Tirar um curso foi, assim, um “processo pacífico”. Na época, não era comum haver mulheres a estudar no ensino superior, pelo que nunca esqueceu o nome da única aluna a frequentar o Técnico: Manuela. “O curso teve um impacto total na minha vida. Casei aos 21 anos e a minha mulher deixou de trabalhar, porque eu sustentava a casa”, assegura João, pai de dois filhos.

“Passado pouco tempo, comprei uma vivenda, com empréstimo ao banco, mas a casa de Leiria já a paguei a pronto”, acrescenta. “Aquilo que ganhei ao longo da vida não tem comparação com o que os meus amigo

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