Viver

Há ‘gajos’ corajosos e depois há Dick Haskins

27 out 2016 00:00

O mais internacional dos autores de literatura de investigação criminal portugueses, Dick Haskins, mora na praia de São Bernardino, a dois passos de Peniche.

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Jacinto Silva Duro

António de Andrade Albuquerque, de seu verdadeiro nome, é um ser bem disposto e directo nas palavras, avaliadas no peso, e apontadas como balas disparadas do revólver com silenciador do detective que criou.

Voz moldada pelo cigarro - vício que partilha com o cafézito diário -, recorda os tempos em que dava vida às histórias do detective Dick Haskins, contando-as sempre na primeira pessoa.

O artifício estilístico é de tal profundidade que, por vezes, intencionalmente, não se distinguem autor real e detective imaginado. Dick Haskins e António de Andrade Albuquerque são a mesma pessoa.

"As minhas personagens fazem aquilo que eu faria se tivesse a coragem que eles têm", admite… “e o Haskins era um gajo corajoso.” Com 87 anos, foi testemunha privilegiada da Segunda Guerra Mundial, viveu a Guerra Fria, assistiu ao primeiro passo de Armstrong na Lua e à queda do Muro de Berlim.

Uma existência vivida na primeira fila do desenrolar da história contemporânea, que lhe encheu a cabeça de contos, romances e novelas e o coração de vontade ávida de os colocar no papel.

Desde Setembro, a editora Reverso, de João Pombeiro, através da Sábado, reeditou quatro títulos das obras do autor: O Espaço Vazio, Labirinto, Estado de Choque, e A Noite Antes do Fim. Os restantes livros da Colecção Vampiro, da XIS, da Enigma e da Dêagá podem ser encontrados em alfarrabistas e numa ou outra livraria.

Eu sou o Albuquerque
"Não me trate por você. Eu sou o Albuquerque. A nossa diferença de idades é pequeníssima", brinca. Escritor, editor e até encenador, acede a contar a sua história e a do pseudónimo.

Quando começou a escrever, percebeu que precisava de um nome sonante para o herói. Estava fora de questão usar o seu próprio nome e, como cantam os Clã, no tema Problema de Expressão, "a língua inglesa fica sempre bem"...

"Os leitores não queriam um livro policial assinado por um Albuquerque mas por um Haskins, um nome estrangeiro mais gritante. Dick é nome de cão, como costumo dizer. E o sobrenome é inspirado no do actor inglês, Jack Hawkins... mas não sei porquê, fiz confusão e escrevi Haskins. Procurei, procurei e não conseguia encontrar o nome Haskins, no Reino Unido", conta.

Apenas sossegou a consciência quando, numa ida a Londres com a mulher, ao passar por uma obra, viu o nome do empreiteiro "Haskins", num tapume. "Tenho até a fotografia em casa." Hoje, quando procura no Google, aparecem- lhe muitos mais Haskins... Até o seu, em primeiro lugar, nos resultados.

Ao todo, publicou 23 livros. O 24.º, um romance intitulado A Metáfora do Medo, espera apenas autorização para ir para o prelo. Nos últimos livros publicados, Albuquerque seguiu por um caminho e Haskins, o duro detective e seu alter-ego, ficou onde estava.

N'O Papa que nunca existiu, fez uma espécie de previsão à boa maneira de Nostradamus e descreveu um Sumo Pontífice, sem vaidades nem preconceitos, que, facilmente, poderia ser confundido com Francisco, anos antes de ele aparecer. Nesse livro, tal como n'O Expresso de Berlim, um romance de espionagem passado durante a Segunda Guerra Mundial, e no inédito A Metáfora do Medo, uma história sobre um inspector da Polícia Judiciária e a sua equipa de investigação, deu férias ao famoso detective e criou novos universos literários. "O Haskins continuará a existir, atenção!", salvaguarda.

O escritor da aldeia
Fixou-se em São Bernardino, a dois passos de Peniche, no início dos anos 80, do século passado, "Em Lisboa estava atolado. Era um inferno. Nasci na Castilho a 11 de Setembro de 1929 e vivi sempre naquela zona, mas, um dia, disse à minha mulher para experimentarmos passar uns tempos em Peniche, onde já tínhamos casa.

Ao fim de sete meses, já não quisemos voltar para Lisboa." Instalado à beira-mar, continuou a escrever, sempre inspirado pelos cenários de investigação criminal que ia montando e desmontando na sua cabeça. Hoje, é conhecido como "o escritor" na aldeia. E acha piada ao título honorífico.

Corta a conversa e uma “bica” a meio para ajudar uma idosa conhecida que pede o favor de a levarem ao mini-mercado, no fim da rua. "Tenho medo de não conseguir chegar lá", diz ela, pedindo desculpa pela interrupção.

Magro e muito enérgico, António Albuquerque levanta-se e sussurra um "volto já!" Minutos depois está de volta para continuar a conversa. "Em 1942, fui aluno de um leiriense, António José Saraiva, no Liceu Passos Manuel, em Lisboa. Era uma excelente pessoa que gostava muito de mim. Mandava- me escrever redacções e dizia: 'tu tens qualidade, hás-de ser escritor!'"

Pedem-lhe um isqueiro emprestado. Albuquerque mete a mão ao bolso e tira um em plástico preto. "Já lá vai o tempo em que se podia fumar dentro dos cafés... Era o cenário fumarento típico dos meus livros", nota.

A Enigma, a televisão e o cinema
Em 1955, o primeiro livro que escreveu, O Sono da Morte, é indicado para impressão pela Empresa Nacional de Publicidade, proprietária, à época, do Diário de Notícias. Mas o processo arrasta-se e Albuquerque traça o seu próprio caminho. Apresentou um outro livro nas Edições Ática, que tinham instalações na Avenida Alexandre Herculano.

O volume esteve para ser enfiado na prateleira dos esquecidos por um dos empregados. "Acabámos por ser amigos, mas íamos ficando inimigos." Valeu ao escritor a acção de outro funcionário que acabou por enviar o escrito à mulher de um dos sócios, que o leu e se interessou pelo trabalho.

"Tinha dois ou três livros na gaveta e arrisquei. À época, era funcionário público na secção de Electrotécnica, dos Assuntos Hospitalares, e estudava Medicina”, recorda. Em 1958, Albuquerque criou a Colecção Policial Enigma, na Ática, e só depois disso, finalmente, O Sono da Morte, chegou às livrarias, pelo Diário de Notícias. "Não conseguia estar a estudar e ali larguei o curso de Medicina e dediquei-me à Enigma."

As previsões de António José Saraiva concretizaram-se e, em 1961, a escrita de António de Andrade Albuquerque, ou melhor, de… Haskins, Dick Haskins, saltou fronteiras. Primeiro Espanha e América do Sul, através da Editorial Molino.

Dois anos depois, as editoras Wilhelm Goldmann Verlag, de Munique (Alemanha), e Krimi Verlag A.G., de Wollerau (Suíça), interessaram-se por oito dos seus livros. Nos anos que se seguiram, acabou por publicar, traduzido, em 30 países. Em 1982, a RTP emitiu 12 episódios de uma série de investigação criminal com realização e produção do escritor e música de Luís Pedro Fonseca.

António Andrade de Albuquerque ensaiava, na Casa da Cultura local, amigos e conhecidos, todos actores amadores, arregimentados nos arredores de São Bernardino e Peniche. Alberto Morgado, Fernanda Farinha, Fonseca Inácio, José Elias, A. Simões de Sousa, Maria Paula Cardoso, Teresa Miguel, Marques Cunha, entre outros, eram os seus amuletos da sorte.

Nem uma incursão na 7.ª arte escapou ao ímpeto literário de Dick Haskins-Albuquerque. O livro O caso Barbot foi adaptado ao cinema com o título Fim-de-semana com a Morte, com actores como João Vilar, Letícia Román e Peter van Eyck como protagonistas. A aventura não correu bem, recorda.

O texto foi profundamente alterado, houve problemas com o pagamento dos direitos de autor e quase envolveu tribunais. O contrato pro forma, assinado entre Vilar e a sua produtora e o escritor, continha uma cláusula, que obrigava a que o argumento fosse aprovado por Albuquerque. Ora esse detalhe tinha passado despercebido a ambas as partes. Já com a equipa de produção germano-britânica em Portugal, Vilar apercebeu-se da questão.

O que se passou a seguir, parece uma história própria de Dick Haskins. "Nem o meu advogado viu aquilo, mas eles tentaram que eu aprovasse o guião. Na Sociedade de Autores havia um fulano que estava feito com eles e que me meteu um monte de papéis à frente para assinar, dizendo que eram cópias para um arquivo. Apercebi-me mesmo antes de assinar aquela sentença de morte e safei-me."

Lisboa dos espiões
A escrita de Haskins - "diz-se 'às-kins', o "à" é aberto", esclarece o autor - ficou indelevelmente marcada pelo período da Segunda Guerra Mundial, quando Lisboa era um viveiro de espiões, agentes alemães, britânicos e norte-americanos e por clássicos do cinema como Casablanca e a personagem estóica e eticamente escorreita, de Rick Blaine, interpretada por Boggart.

"Eu teria uns 15 anos, mas, naquele tempo já éramos uns homenzinhos e percebíamos tudo o que se passava à nossa volta. Segui de perto os eventos. Via, na Pastelaria Coimbra, entre a Avenida da Liberdade e a Mouzinho da Silveira, os alemães nas mesas de um lado e os Aliados no outro. Era uma barafunda. Apaixonei-me por aquilo tudo e usei esse cenário nos meus livros".

Da cabeça, nunca mais lhe saiu também uma mulher muito bonita, uma espia, que passeava os cães na Alexandre Herculano e que fazia virar cabeças. "Aquele ambiente era uma coisa palpitante que ajudou a dar-me inspiração para os livros."

Isqueiro de Ouro, escrito na época em que saiu da editora Ática, por divergências com um dos sócios, é o seu bestseller, mas diz que não tem um livro favorito. "São todos. Mas esse tem história. Saí da editora e levei a colecção. Paguei tudo, foi difícil, mas consegui."

Com a saída, criou a editora Dêagá, em 1964, que manteve até 1975, publicando cinco colecções mensais de Policial, Espionagem, Ficção Científica, Romance e Histórica.

A aventura acabaria quando o distribuidor abriu, inesperadamente, falência, inutilizando uma encomenda de 30 mil volumes. Mais uma vez, Albuquerque teve de lançar mão de algumas habilidades dignas do seu herói literário e pagar tudo o que era devido.

No final de mais este episódio, cansado, fechou as portas. "Não houve desonra, nem a polícia andou atrás de mim", diz, orgulhoso da pírrica vitória.

(Artigo corrigido às 10:46 horas - Clã, no tema Problema de Expressão, "a língua inglesa fica sempre bem"...)

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