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Coronavírus. Há limites para o humor em tempos de guerra?

9 abr 2020 12:23

Quando a realidade supera a ficção, o que resta ao humorista? Continuar a provocar o riso, como quem conta piadas num funeral. Não há melhor tema do que uma tragédia que coloca o público, todo, no mesmo barco

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Rita Leitão, humorista, mantém-se a trabalhar como animadora sociocultural num lar de idosos
DR

Por que é que a Covid-19 se propaga tão rapidamente nos lares de idosos? A culpa é da artrose: ninguém consegue levar o braço à boca para tossir. O comentário de Rita Leitão é apenas um exemplo de como nem a Covid-19 coloca limites ao humor, pelo contrário, rir é remédio santo e não faltam casos de humoristas que resistem durante a pandemia, apesar do cancelamento de espectáculos e conteúdos.

Jorge Mourato, natural da Marinha Grande, tem publicado pequenos vídeos através de aplicações como a Tik Tok; André Pereira, de Leiria, continua a debitar sarcasmo e ironia no Facebook, agora acerca do isolamento provocado pelo novo coronavírus; a nível nacional, Guilherme Duarte, Bruno Nogueira, João Quadros, Salvador Martinha, entre outros, mantêm-se ligados ao público e a fazer o que melhor sabem: provocar o riso.

Rita Leitão, de Pombal, que no universo da comédia stand-up assina Meia Dose de Leitão, trabalha, justamente, num lar de terceira idade, no Louriçal, onde é animadora sociocultural. Ou seja, executa missões tão distintas como tocar guitarra, cozinhar folares ou ajudar os utentes a falar com os familiares por vídeochamada.

Meio a brincar, meio a sério, queixa-se que “ninguém anima a animadora”. E ela bem precisa: vive com o namorado desde Janeiro e ele não sai de casa, mudou-se para a Figueira da Foz e a praia está fechada.

Com os idosos, procura cultivar o optimismo e recorre ao humor como estratégia para iluminar dias ensombrados por um medo maior do que o normal. Um método que também identifica nas redes sociais. “Toda a gente se tornou um bocadito humorista. Qualquer publicação no Facebook, das duas uma, ou é muito pesada e triste ou então é uma piadola qualquer. Foi a forma de as pessoas tentarem aliviar um bocado a coisa”.

Apesar das actuações canceladas no contexto do estado de emergência, incluindo a participação no Lisbon Stand-Up Fest, Rita Leitão entra num vídeo publicado no YouTube por Joel Ricardo Santos, a 22 de Março, com a hashtag comediantes unidos, em que Luís Filipe Borges, Fernando Rocha, Eduardo Madeira, Nilton, Fernando Alvim e António Machado, entre outros, de Portugal e do Brasil, declamam, com gravidade, a letra do hit A Garagem da Vizinha (e Quim Barreiros também. Cabe-lhe o segundo verso, logo no arranque).

Material de primeira

União é, precisamente, o que se manifesta em tempo de Covid-19, acredita Pedro Durão. “Pela primeira vez o mundo vê-se numa situação na qual todos nos conseguimos relacionar. E se uma das premissas base para o humor é a identificação, acho que é um tema com o qual toda a gente se vai identificar”, afirma, para explicar por que acha que o novo coronavírus é material de primeira para textos humorísticos.

Que é como quem diz que não há linhas vermelhas a conter a criatividade. “Embora vivamos uma situação inédita e frágil para a saúde mental de toda a gente, não me parece que os limites tenham mudado. Andamos mais sensíveis, diria eu, mas é só”, analisa o humorista originário de Porto de Mós, membro do colectivo Roda Bota Fora e apresentador do programa Curto Circuito na SIC Radical.

Pedro Durão

Pedro Durão considera que Bruno Nogueira “está a comandar as tropas e muito bem”, nos directos via Instagram, todas as noites. Foi lá que Fernando Rocha anunciou que a doença – testou positivo para Covid-19 – lhe está a servir de inspiração para futuros espectáculos ao vivo. Mas há outros: “A Rita Camarneiro lançou agora um podcast do qual sou fã chamado Coisitas de Rita, mas tenho sentido toda a gente com muitas ideias que até podem não estar a ser lançadas já, mas com certeza serão fruto deste confinamento”.

Não é o caso dele, por enquanto. “Tenho zero nabos na púcara. Muito raramente, quando estou com insónias, faço uns lives no Instagram para alguns queimados que também estejam sem conseguir dormir. Mas não consideraria, de todo, profissional”. A conta de Instagram (@pedurao) traz aviso: “Pedro tem um creepstache e faz lives às 5 da manhã. Perdemos o Pedro para a demência. Não seja como o Pedro. Tenha atenção nesta altura, não misture a vodka com tranquilizadores de esquilos”.

Mesmo sem espectáculos e sem Curto Circuito, as mudanças na rotina são mínimas, garante. “Corto a relva em tronco nu, deito- me mais tarde e bebo vodka com ginger ale em casa. De resto continua tudo muito parecido”.

Quando a realidade supera a ficção

Já em pleno período de isolamento profiláctico, surgiu em Alcobaça um novo registo de banda desenhada, o Quarentoons, onde se brinca, por exemplo, com a epidemia de directos a partir de casa, mas também com o primeiro-ministro britânico Boris Johnson (que começou por defender uma estratégia de imunidade de grupo e actualmente está nos cuidados intensivos com Covid-19) e com as recomendações contraditórias das autoridades acerca do uso de máscara.

“A realidade é tão surreal que, muitas vezes, as piadas fazemse por elas próprias. Por vezes a dificuldade é dizer algo mais ridículo do que algumas personagens reais dizem, por exemplo, Bolsonaro ou Trump”, descreve Natacha Costa Pereira, que assina a tira – disponível no Facebook – com outro autor, Len.

“O Quarentoons trouxe-me aquilo que eu espero que traga aos outros também: um bocadinho de distracção destes tempos tão assustadores. Além disso, trouxe-me a proximidade diária de um amigo que gosto muito”.

Na opinião de Natacha Costa Pereira, “o humor é muitas vezes catártico”, funciona como um escape. “Acho que as pessoas que têm uma propensão natural para o humor, também têm uma sensibilidade especial para com a tragédia. São aqueles que fazem piadas nos funerais. Não o fazem por falta de respeito, fazem-no eventualmente para suportar o confronto com a sua finitude”, afirma ao JORNAL DE LEIRIA.

No Quarentoons, só há um terreno proibido. E não é a morte.

“Não quisemos ser cínicos. Não quisemos apresentar soluções fáceis para problemas difíceis. Quando vimos os políticos perdidos, inicialmente nalguns casos, noutros durante todo o tempo, não pudemos deixar de sentir empatia com eles. Nós também não tínhamos certezas absolutas. Exemplo disso é o da tira do Estado de Emerdência, que inicialmente fizemos como Estado de Incompetência, mas decidimos substituir... O que sabíamos nós se o estado de emergência devia ser implantado mais cedo ou mais tarde? Nem sequer sabíamos que implicâncias teria. Por essa razão fugimos um pouco à acusação gratuita, que até pensamos que nos poderia trazer mais likes”, explica a humorista de Alcobaça.

“No entanto, acabámos por criar algumas personagens como o Comentador Baralhado, que acaba por dizer umas verdades meio trapalhonas, ou o Gato da Menina, que é um bocado sádico”.

Natacha Costa Pereira, que integra a estrutura profissional do colectivo S.A. Marionetas, ou seja, tem a vida suspensa, com toda a actividade cancelada, confessa uma “remota esperança que a partir daqui se valorize um bocadinho mais a cultura”. E, provavelmente, também os humoristas. Mesmo os que fazem piadas em funerais.

Natacha Costa Pereira