Missão Ucrânia

Como Leiria resgatou 21 refugiados. “Obrigado. Vamos rezar por vós”

10 mar 2022 08:24

Missão Ucrânia: após dias de medo e ansiedade – “percebi que algo terrível ia acontecer. Em poucos minutos ouvimos uma explosão” – há agora uma nova oportunidade: “Finalmente, estamos seguras”

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O grupo que viajou para Leiria inclui ainda um menino de seis anos de idade
Ricardo Graça

Alguns dias antes de chegar a Portugal, ainda na Ucrânia, Alana recebeu uma mensagem inédita da direcção da escola onde dá aulas. Informava que todos os homens daquele grupo de contacto deviam dirigir-se ao estabelecimento de ensino logo que possível. Uma quinta-feira, às cinco e meia da manhã. Mas não uma quinta-feira qualquer. “Percebi que algo terrível ia acontecer. Em poucos minutos ouvimos uma explosão, ligámos a televisão e compreendemos tudo”.

Alana, que no primeiro momento pensara continuar em Kiev, viria a abandonar a cidade em 24 horas. No entanto, mesmo numa localização mais segura, o toque das sirenes não deixava de se ouvir e os ataques constantemente obrigavam a família a proteger-se nos abrigos subterrâneos, bastante húmidos e frios. “E a toda a hora eu me preocupava com a segurança e saúde do meu filho e da minha mãe”, conta ao JORNAL DE LEIRIA.

Com a invasão russa a expulsar os ucranianos do seu próprio país, Alana e o filho juntaram-se ao imenso êxodo de mulheres e crianças que por todos os meios procuram escapar através das fronteiras com a União Europeia.

“Tive de deixar a minha querida mãe, o meu adorável marido, a minha nação e os meus amigos pelo meu filho, pela segurança dele”. O marido conduziu-os de carro durante dois dias até à vila de Korolev, onde, no centro de acolhimento, conheceram outros refugiados à espera de entrar na Hungria e com a ajuda deles conseguiram dois lugares na caravana de ajuda humanitária com destino a Leiria, que, ontem à noite, chegou ao estádio municipal.

Ao todo, a operação SOS Ucrânia activada pela Câmara Municipal de Leiria em parceria com a comunidade ucraniana residente no concelho permitiu recolher 21 mulheres, adolescentes e crianças em Tiszabecs, uma povoação na Hungria, encostada à fronteira com a Ucrânia, por onde, até à última segunda-feira, 40 mil pessoas tinham atravessado desde o início do conflito militar.

Cansados e abatidos pela situação no seu país, mas, ao longo do percurso, também cada vez mais tranquilos e disponíveis para sorrir.

De Leiria à Ucrânia para resgatar mulher e filha

Para o êxito da missão, contribuíram os contactos regulares entre a comunidade ucraniana em Leiria, a comunidade ucraniana na Ucrânia e o residente em Leiria Dmytro Kovalchynskiy, um dos três condutores ucranianos inseridos na caravana, que saiu de Leiria na sexta-feira, 4 de Fevereiro, e recolheu todas as pessoas na lista de refugiados pelas 8:00 da última segunda-feira, depois de um dia em Mátészalka, a 50 quilómetros de Tiszabecs.

Duas horas antes, pelas 6:00, foram entregues a uma associação ucraniana 20 toneladas de donativos de particulares e empresas recolhidos nos quartéis de bombeiros do concelho de Leiria e no estádio municipal (32 caixas de artigos de higiene, 394 de roupa térmica, 138 de bens alimentares, 47 de artigos de saúde e 17 de acessórios, enviadas para a Ucrânia num camião de longo curso) e ainda mais uma quantidade de bens transportados nas carrinhas.

Além de Dmytro Kovalchynskiy, nos cinco veículos de Leiria – três assegurados pelo Município e dois garantidos pelo JORNAL DE LEIRIA com despesas de combustível e portagens pagas pelo Grupo Movicortes e pela empresa Matcerâmica – seguiram ainda a médica Inês Vieira e os bombeiros Miguel Novais (comandante dos Bombeiros Voluntários de Leiria), Fernando Fernandes (Sapadores de Leiria), Hugo Fernandes (Voluntários da Ortigosa) e José Manuel (Voluntários da Maceira), um voluntário de Évora, a equipa do JORNAL DE LEIRIA e os cidadãos ucranianos residentes em Leiria Maksym Fedin e Evgeniy Antonov. O primeiro foi buscar a mãe, a cunhada, a sobrinha de dois anos de idade e uma amiga. O segundo, em Portugal desde Fevereiro, recuperou a mulher e a filha de dois anos, que já não via há várias semanas.

Desde sexta-feira, ambos atravessaram Portugal, Espanha, França, Itália, Eslovénia e Hungria, ao longo de 3.300 quilómetros e mais de 40 horas na estrada. O reencontro, tão intenso quanto se pode imaginar, aconteceu, com lágrimas e felicidade, no centro de apoio a refugiados de Tiszabecs.

As famílias de Maksym e Evgeniy viajaram de comboio para a fronteira a partir da região do Donbas. De noite, a composição parou na linha férrea, luzes apagadas, uma hora em silêncio, para evitar os aviões russos que àquela hora sobrevoavam a zona. “Muito, muito medo”, descreve Maksym ao JORNAL DE LEIRIA. A cidade de que são originários, Slovyansk, começou a ser bombardeada no dia seguinte.

"Acordámos com três explosões, às cinco da manhã"

Além do grupo de Alana (que inclui a ex-cunhada e a filha e uma imigrante em Leiria e o filho, apanhados pela invasão russa durante as férias na Ucrânia) e das famílias de Maksym e Evgeniy, há mais dois grupos: duas mães, ambas com dois filhos adolescentes (no total, três rapazes e uma rapariga).

De Kiev, chega Nadia Bezugla, com a irmã e a sobrinha, também adolescente. “Finalmente, estamos seguras. Finalmente, dormimos e comemos normalmente”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. Para trás, ficam os pais, de 65 anos, que querem permanecer na Ucrânia. O que não fica para trás são as marcas da guerra. “No dia 24 de Fevereiro, acordámos com três explosões, às cinco da manhã”.

Optaram por deixar a cidade dois dias depois. “Kiev estava cercada e havia combates. Uma amiga jornalista telefonou-me e disse-me: Nadia, sei que tens medo, mas se não fores agora sinto que não irás. É a tua vida, é perigoso, tens de ser tu a decidir”. O cunhado levou-as de carro até à fronteira.

No caminho, sempre com a ameaça de aviões russos nos céus, passaram por um ponto de controlo por soldados ucranianos, que, souberam mais tarde, morreram uma hora depois, vítimas de um ataque russo. “Todos eles”.

Depois de quatro dias sem dormir, alcançaram abrigo em Korolev, junto à fronteira com a Hungria, onde esperaram três dias pela caravana com destino a Leiria, que é agora sinónimo de uma nova oportunidade. “Claro que sinto esperança. Obrigado por tudo. Vamos rezar por vós toda a vida”.