Sociedade

Como e quando usar construções modernas em monumentos?

23 fev 2018 00:00

Contestação | Dias após o anúncio de que o Castelo de Leiria irá ser intervencionado, incluindo a colocação de uma cobertura, com materiais contemporâneos, na Igreja da Pena surgiu uma petição que pede o abandono da ideia.

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Jacinto Silva Duro

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Por outro lado há especialistas que defendem a urgência e adequação da intervenção. Afinal, quando é que se deve intervir em património classificado?

A intenção de criar uma cobertura na Igreja da Pena, no Castelo de Leiria, para acolher eventos de variada natureza, gerou contestação nas redes sociais e está a circular uma petição contra a acção no antigo local de culto.

Criada na plataforma online Petição Pública, ao fim de duas semanas o documento contava com 31 assinaturas. Os criadores da petição referem que o castelo “é um dos monumentos mais maltratados de Leiria” e que embora aplaudam o desejo de preservar o monumento, “bem como de o transformar num espaço de utilidade”, condenam a intenção de colocar materiais modernos num monumento medieval, em específico na Igreja da Pena.

O documento refere ainda que este pormenor da intervenção “é sintomática de uma noção de ‘conservação’ moderna e altamente prejudicial para o património histórico” e que a adaptação moderna da Igreja da Pena não se conjuga com o restante espaço, e tem um impacto negativo no espaço envolvente.

“A adaptação moderna da Igreja da Pena a sala de espectáculos oblitera por completo a sua valência medieval, enquanto, o inverso – o restauro de feições medievais –, não elimina a valência do espaço enquanto sala de espectáculos.”

Os subscritores pedem que seja revisto o parecer da Direcção-Geral do Património e Cultura que autorizou a cobertura e que seja “imediatamente abandonada” a intenção de cobrir a Igreja da Pena com um “telhado moderno e totalmente descaracterizante”.

“Jóia do gótico” que se perdeu por incúria
Em meados do século XIX, o abatimento do tecto da Igreja da Pena, antiga capela real de D. João I, “filha” do gótico do Mosteiro da Batalha e um dos melhores exemplos do estilo em Leiria levou a que a cidade do Lis perdesse uma das suas jóias por acção dos ventos, da chuva, dos líquenes, dos pombos e da incúria humana.

Na mente do historiador Saul António Gomes, autor de diversos trabalhos de investigação sobre a antiga fortaleza, esta é uma certeza baseada em provas documentais e arqueológicas. “Perdeu-se o tecto que, segundo O Couseiro, seria magnífico, os frescos, o mobiliário, a decoração escultórica... A cobertura deveria ter sido colocada, logo no século XIX”, afirma.

O docente da Universidade de Coimbra teme que, sem o telhado que o protegeu durante séculos, o espaço e o património que ainda resta, continuará a degradar-se. “Temos de preservar e transmitir às próximas gerações e isso será com a cobertura de protecção.

Aquela igreja não é as Capelas Imperfeitas. Foi criada com um fim e cumpriu-o durante muito tempo. Era local de culto e não um monumento em ruínas”, afirma, sublinhando que a colocação de uma cobertura para protecção será uma intervenção realizada de acordo com os preceitos em vigor. Segundo a autarquia, a cobertura do edifício que chegou a ser a Sé da Diocese de Leiria, será assente numa estrutura metálica em cobre, com uma área em vidro, de forma a permitir a “entrada de luz”.

O arquitecto Vasco Pinheiro, da empresa Santos Pinheiro que elaborou o projecto, explica que a intervenção pretende, essencialmente, “travar o processo de degradação” do edifício, mandado construir no século XIV por D. Dinis.

"A marca do arquitecto deveria ser elogiada por ser contida"
De uma forma ou de outra, a discussão está em cima da mesa. Quando, como e porquê se deve intervir em património classificado? Na região há vários exemplos de criação de novos espaços a partir de património antigo. Nalguns, houve reconstrução e readaptação, como aconteceu no castelo templário de Pombal, cuja torre, com aplicação de aço corten, é visível à distância, ou, na reformulação, quase sem impacto visual do espaço, no Museu do Moinho do Papel, em Leiria, com projecto do arquitecto Siza Vieira, ou ainda a criação de um novo edifício em vidro e aço, junto à Resinagem, na Marinha Grande, que acolhe o Núcleo de Arte Contemporânea local.

Quando se trata de intervir no património, classificado ou antigo, não há apenas uma corrente de pensamento. Há várias perspectivas e considerações a serem feitas, de acordo com os casos concretos.

De um lado, há quem defenda o ruinismo, do outro, quem argumente pela reconstrução pesada e total com traços contemporâneos. São posições extremadas, maniqueístas e fonte de continuada discussão. As concepções sobre a inviolabilidade do património não são imutáveis.

Veja-se o caso da destruição, em 2011, da capela das Chãs, templo com origens no século XVI, na freguesia de Regueira de Pontes, Leiria. O mais antigo edifício da localidade e guardião das memórias da comunidade, foi considerado sem interesse patrimonial pelo Igespar e mandado demolir pela paróquia local, após aprovação da Câmara de Leiria, de modo a construir-se um adro para servir ao templo contemporâneo, entretanto construído para o substituir.

Certo é que, nos últimos anos, a ideia de que as intervenções devem usar linguagens plásticas, materiais e volumes contemporâneos, marcando o contraste com o património pré-existente, tem vindo a ganhar adeptos. "Não mimetizar e não copiar os traços arquitectónicos que já existiam. A ideia tem ganhado força, mas nem sempre por boas razões. Muitas vezes, porque há um mercado de arquitectura, engenharia e pessoas ligadas aos materiais, que pretendem deixar a sua marca e intervenção nos locais e impelem a concepção neste sentido", acusa o vice-presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses.

Luís Raposo, que foi presidente do Museu Nacional de Arqueologia e é, presentemente, presidente do ICOM Europa, sublinha que, bastas vezes, mesmo havendo uma justificação bem fundamentada, as intervenções são impulsionadas por "lobbies".

Por outro lado, adianta, há quem defenda o “ruinismo”. Ou seja, que a melhor e mais digna forma de olhar, de preservar e trazer para a contemporaneidade o património edificado e os vestígios do passado é conservar as ruínas e os sinais da passagem dos tempos, devidamente tratados, com "estancamento" dos processos de deterioração.

São ideias que estão nos antípodas uma da outra, e que levam o arqueólogo a afirmar que é necessário ser-se cauteloso e olhar para as características únicas de cada caso e que, mesmo optando por uma linguagem contemporânea, se deve ser muito prudente e limitado nas intervenções.

"Há monumentos onde há exagero de acção contemporânea, ao nível dos volumes e dos materiais. O aço escovado até está muito na moda... mas é algo demasiado pesado e agressivo. Parece que o arquitecto quer deixar a marca da sua passagem pelo monumento, quando a marca do arquitecto deveria ser elogiada por ser contida."

“Nos tempos em que vivemos, caímos nos extremos, ou somos muito conservadores e fundamentalistas ou esquecemos o património e deixamo-lo degradar-se”. O director do Mosteiro da Batalha também denota a existência de uma visão dicotomist

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