Sociedade

Álvaro Domingues: Em Portugal "a economia do eucalipto é uma economia em falência”

26 out 2017 00:00

O geógrafo e investigador na área das políticas urbanas, diz que "o centro histórico atingiu o estatuto de menino mimado”.

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Maria Anabela Silva

Em que medida é que a tragédia dos fogos é reflexo da falta de ordenamento do território?

Quando somos confrontados com situações de elevado poder de dramaticidade, queremos pacificar-nos, encontrando bodes expiatórios. Nesta questão dos incêndios, há uma diversidade de razões que são ventiladas.

Falamos de floresta sem sabermos muito bem ao que nos referimos. Pode ir de matagais, até à floresta industrial, passando por uma invasão de infestantes. No que respeita à produção de árvores para madeira, um dos dramas de fundo é a perda de preço. Portugal especializou-se em madeiras de preço muito baixo: o eucalipto e o pinheiro-bravo.

O preço do eucalipto tem vindo a descer significativamente, nomeadamente com a sua expansão em países tropicais e de clima húmido, como o Brasil, onde a árvore se desenvolve em períodos ainda mais curtos do que em Portugal, e com factores de produção muito baixos, como Moçambique.

Como o País foi intensamente agricultado durante séculos, a floresta ficou nos piores terrenos. Estes factores somados fazem da economia do eucalipto uma economia em falência. Nessas condições, não há retorno do investimento que se faça na limpeza ou em novas plantações, que devem ser feitas após o terceiro corte. Se não há retorno, não há investimento.

A acrescentar a isso, há a desruralização de que fala no seu livro A vida no Campo.

Este é um conceito-chave. Portugal foi o último país agrícola da Europa. Hoje, dois terços do País estão em regressão. Assistimos à deserção, o não estar ninguém, deixando os território por sua conta e risco.

O próprio ordenamento é uma mitologia tecnocrata do pós-guerra, que acha que algures há uma entidade que olha para o território como se fosse um jogo de legos e que vai mudando as peças. As dinâmicas territoriais são ditadas pelas dinâmicas sociais.

Os montes que os meus pais me deixaram têm um valor puramente simbólico. Até me podia transformar num empresário florestal, se me comprassem os pinheiros. Podia mesmo reinvestir esse dinheiro, se soubesse que, quando fosse o próximo corte, iria ter retorno. O problema é que o mecanismo económico que viabiliza esse comportamento não existe? Diz-se também que se devia desmatar à volta das povoações. Curiosa afirmação.

Porquê?

Porque isso é partir do princípio que o País está todo dividido em povoações e não está. Vou de Leiria até Viana do Castelo em urbanização contínua ao longo das estradas, num mosaico territorial extremamente complexo, que alterna o edificado com o não edificado.

O topónimo aldeia é uma palavra de origem árabe que designa povoamento, aglomerado. Isto existe em Trás-os-Montes e no Alentejo, mas não existe em boa parte do território nacional. Como é que aplico esse conceito de protecção aos aglomerados, criando um airbag à volta, se esse povoamento não existe? Espero que haja bom senso para que o conjunto de medidas que se anuncia tenha flexibilidade de criar respostas ao nível local.

Que medidas não podem deixar de ser tomadas?

Se a política for a de substituir floresta que ardeu por nova floresta, é necessário perceber como está o mercado dos derivados de madeira. Estranho que, no meio de toda a discussão, não se fale do preço da madeira e da pasta de papel.

Uma vez, em conversa com um dos maiores produtores de pellets em Portugal confrontei-o com o mapa de incêndios em Famalicão, onde só havia fogos num determinado sector do concelho. Ele explicou-me que numa parte os solos eram de granito e na outra de xisto.

Nos terrenos de matriz de granito há grandes declives e afloramentos rochosos. Aí, existem eucaliptos e algum pinheiro-bravo porque durante a ditadura houve uma campanha maciça, estimulada pelo Plano Marshall, que achava que Portugal ia ser o maior produtor de pasta de papel da Europa, e porque havia preço.

Até aí, esses terrenos eram considerados marginais?

Exacto. Eram terrenos marginais que serviam para mato e pastoreio e que foram ocupados com eucalipto. As circunstâncias mudaram. Mecanizou- se a indústria da madeira e hoje não é rentável retirar eucaliptos ou pinheiros desses terrenos.

Nos terrenos de xisto, o solo é mole, mas nunca foi agricultado porque antigamente não havia tecnologia para isso. Hoje já há. A mesma máquina faz a limpeza, revolve a terra e aduba. Aqui, o preço da produção corresponde ao que é expectável. Era importante que se introduzisse 'economês' no discurso sobre a floresta e os incêndios.

Ainda faz sentido falarmos de ruralidade em Portugal?

Não, de todo. A palavra rural significava, pelo menos, três coisas em simultâneo: que a economia do rural é a agricultura, maioritariamente de escala familiar e para auto-consumo, e que tem associada a cultura camponesa, com os agriculturas a funcionarem como jardineiros da paisagem.

Hoje, o PIB nacional relacionado com a agricultura estará nos 4%. Não podemos entender ruralidade sem agricultura e sem a cultura camponesa, que desapareceu. Há depois aquela questão esotérica de as estatísticas considerarem o rural em função da densidade demográfica. Não tendo, sob o ponto de vista cultural e económico, ruralidade chamo rural ao território por critérios estatísticos cegos de densidade demográfica. O adjectivo rural perdeu sentido

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