Viver

A cuidar do legado de Afonso Lopes Vieira, 74 anos depois

26 nov 2020 21:00

Está em curso o restauro e limpeza dos livros da biblioteca pessoal do poeta, doados a Leiria. O espólio atrai investigadores de Portugal e do Brasil e continua a ser informatizado para facilitar a pesquisa à distância

Marta Matos é a técnica responsável pela recuperação da biblioteca privada de Afonso Lopes Vieira
Marta Matos é a técnica responsável pela recuperação da biblioteca privada de Afonso Lopes Vieira
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
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Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
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Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Milhares de volumes estão dispostos como no antigo escritório do poeta
Ricardo Graça

Urgente, mas demorado. Provavelmente, um trabalho para vários anos. Pela primeira vez, os livros que constituem o legado de Afonso Lopes Vieira para Leiria estão a ser sujeitos a uma empreitada de tratamento e restauro.

Depois de cinco meses de actividade no ano passado, o novo contrato celebrado em Março de 2020 tem a duração de 12 meses e é renovável por igual período.

Parece curto para a dimensão da tarefa: oito mil volumes, entre eles, o mais antigo, com 471 anos, é uma tradução para castelhano de Apotegnas, de Erasmo de Roterdão.

O exemplar de Apotegnas datado de 1549 (Foto de Ricardo Graça)

No escuro, para escapar ao desgaste que a luz imprime, a livraria privada com aparência de museu encontra-se numa sala da biblioteca municipal, no Terreiro, disposta como no escritório do chamado Palácio da Rosa, a residência do poeta em Lisboa até à morte em 1946. E só acessível a investigadores autorizados ou visitas de escolas.

Na colecção de livros, manuscritos, revistas, jornais e partituras, todos os exemplares “estão em mau estado”, a pedir intervenção profunda no corpo e encadernação ou pelo menos “uma limpeza, um procedimento mais simples”, descreve Marta Matos, a técnica de conservação e restauro formada no Politécnico de Tomar, mas natural da Marinha Grande, a quem o Município confiou o projecto avaliado em mais de 20 mil euros.

As mudança de espaço ao longo dos anos não ajudaram e as oscilações nos níveis de humidade, por exemplo, causaram rachas nas lombadas, logo, restabelecer as encadernações é um dos objectivos.

A livraria de Afonso Lopes Vieira, doada à cidade por vontade expressa do escritor, numa acção materializada depois da sua morte pela mulher, Helena Aboím, e por um amigo, Américo Cortez Pinto, constitui o núcleo fundador da biblioteca municipal aberta ao público em 1955, nos Paços do Concelho, depois transferida, em 1997, para as actuais instalações no Largo Cândido dos Reis. E que tem o nome do primeiro benfeitor.

Retrato a óleo de Afonso Lopes Vieira por Adriano Sousa Lopes (foto de Ricardo Graça)

Desde Março de 2019, estão recuperados cerca de 70 livros. O trabalho é “muito demorado” e além de mãos secas e limpas requer instrumentos que também se encontram na medicina – bisturis, pinças, tesouras – para contrariar os efeitos da luminosidade, que é “um factor de degradação irreversível”, mas, também, da humidade, da temperatura e do apetite dos insectos, “os mesmos que comem a madeira”, explica Marta Matos.

No Facebook, é possível acompanhar o progresso do projecto, através de vídeos com menos de um minuto publicados regularmente na página da biblioteca municipal, com imagens do antes e depois para alguns livros já recuperados, em que se incluem Les Poesies d'Horace, uma tradução francesa de 1857 do poeta e filósofo romano Horácio, ou Voyages D´Antenor en Grèce et en Asie, avec des Notions sur l'Égypte: Manuscrit Grec trouvé à Herculanum, uma obra do escritor e dramaturgo francês Étienne-François de Lantier datada de 1800.

“Na conservação e restauro, aproveitamos ao máximo o que existe”, diz Marta Matos. “Não há nada criativo. É manter como está”. O objectivo é “preservar a patine”, ou seja, o aspecto antigo, porque “não interessa que [os livros] pareçam novos, quando não o são”. Seria “falsear a estética”.

Mina para investigadores

Como personalidade portuguesa na primeira metade do século XX, talvez o papel mais relevante de Afonso Lopes Vieira, que nasceu em Leiria a 26 de Janeiro de 1878 e veio a falecer em Lisboa um dia antes de completar 68 anos, seja a capacidade “de criar redes de intervenção cultural com muita gente”, assinala a bibliotecária Ângela Pereira, do Município de Leiria. Pessoas como Augusto Rosa e a esposa Leonor Rosa, Adriano Sousa Lopes, Agostinho de Campos, Raul Lino, Teixeira Lopes, Eugénio de Castro ou Antero de Figueiredo, entre outros. O que se reflecte na “fantástica” correspondência disponível, com preciosidades como a carta da actriz Amélia Rey Colaço em que lamenta a doença “da Marianinha”, a filha. “Quase parece que estamos a viver a época”.

Além da correspondência, que “tem sido pedida a consulta para diversos estudos da história cultural, política e literária portuguesa”, também o espólio “de manuscritos e alguns livros” são “fontes para o melhor conhecimento” do período em questão, sublinha Ângela Pereira, “inclusive nas ligações entre Portugal e Brasil”, o que tem atraído a Leiria “alguns investigadores brasileiros para desenvolverem trabalho sobre a geração brasileira contemporânea de Afonso Lopes Vieira”.

Homem da elite, o autor de Nova Demanda do Graal, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa ou Animais Nossos Amigos, para sempre associado a São Pedro de Moel e às Cortes, estabelece “muitos contactos culturais e literários, apadrinha muitos novos escritores”, dava-se com figuras como Aquilino Ribeiro ou Teixeira de Pascoaes e na biblioteca municipal de Leiria “há imensos livros oferecidos pelos próprios autores”, o que “tem chamado muito investigador”.

Oito mil ou mais

Segundo Ângela Pereira, no acervo de Afonso Lopes Vieira contam-se oito mil volumes ou mais. Clássicos da narrativa ficcional, poesia, ensaios, filosofia e linguística, revistas académicas e científicas, jornais. “Um património” que “vale pelo conjunto”. Uns três mil exemplares não estão à vista, encontram-se no depósito, no mesmo edifício. Também carecem “de intervenção” no âmbito do tratamento, conservação e restauro.

Aspecto da sala Afonso Lopes Vieira na BMALV, ao Terreiro (Foto de Ricardo Graça)

Muitos livros têm o carimbo de António Xavier Rodrigues Cordeiro, advogado, poeta, jornalista e político, tio-avô de Afonso Lopes Vieira, a quem deixou em herança, além da casa nas Cortes, a biblioteca pessoal, que constitui o conjunto mais antigo da livraria privada que hoje se descobre no Terreiro. Muito activo em iniciativas de educação para a população, Xavier Cordeiro não tinha filhos e quando o jovem Afonso vinha a Leiria ficava com o tio-avô. “O primeiro contacto” com os clássicos e com a literatura portuguesa acontece “nessa bilbioteca fabulosa”, nota Ângela Pereira, é lá que conhece a obra de Gil Vicente e Francisco Rodrigues Lobo, no fundo, “nesse ambiente literário se dá talvez o clique” do futuro poeta e escritor.

A bibliotecária do Município de Leiria explica que actualmente os livros doados por Afonso Lopes Vieira à cidade “nem sequer são dados à consulta” quando não oferecem “condições de manuseamento”. Mesmo os que se apresentam em melhor estado, só a investigadores. Quando possível, tem-se optado “por fornecer cópias digitais”. Algumas fazem parte da Biblioteca Nacional Digital. “Temos de ser muito práticos e pragmáticos porque os livros já têm muitos anos e qualquer manuseamento estraga”, justifica. “Não temos nenhuma praga activa [mas] há livros que estão muito degradados”.

E agora, digital

Outro projecto a decorrer há anos visa passar para suporte digital a informação que existe na base de dados em papel e que constitui o catálogo de fichas da livraria Afonso Lopes Vieira. “Só depois de tudo informatizado é que conseguiremos ter uma perspectiva mais real, em termos numéricos, do que estamos a falar”, reconhece Ângela Pereira. Será também mais fácil o trabalho dos investigadores, que podem pesquisar à distância.

Para a investigadora Cristina Nobre, o mais interessante no espólio é “a quantidade de elementos que mostram como a actividade da escrita foi precoce em Afonso Lopes Vieira”, por exemplo, “jornalinhos que distribuía gratuitamente na praia”, na adolescência, como o título A Vespa, assim baptizado porque mordia a vida social dos veraneantes de São Pedro de Moel.

É uma biblioteca pessoal rica igualmente pela quantidade de livros com dedicatória oriundos da plêiade de amigos de Afonso Lopes Vieira, a elite de um determinado período da história portuguesa. “Quase toda a gente daquela época falava com ele”, resume Cristina Nobre. “E ele é uma espécie de padrinho literário de novos escritores, como foi do Vitorino Nemésio”.

Fotografias e objectos pessoais também fazem parte do espólio (foto de Ricardo Graça)

Mais: segundo a professora do Politécnico de Leiria, Afonso Lopes Vieira “era uma espécie de opinion maker”, que colocou a obra de Gil Vicente em primeiro plano, levando-a ao teatro e adaptando textos para crianças – “até se ter começado a debruçar sobre Gil Vicente, ele pura e simplesmente não era estudado na escola” – e promoveu a redescoberta de outro poeta natural de Leiria, Franciso Rodrigues Lobo.

A influência de Afonso Lopes Vieira estende-se ao nome maior da lírica portuguesa, Camões. “Decidiu fazer uma nova edição dos Lusíadas e propôs essa edição à Imprensa Nacional Casa da Moeda, que é a que existe ainda hoje”, para depois viajar até ao Brasil e entregar em mãos o primeiro exemplar, no ano de 1928, numa antecipação da importância que hoje se dá à comunidade de expressão lusófona.

Manuscrito desaparecido

Mas, para Cristina Nobre, o mais estimulante da biblioteca pessoal de Afonso Lopes Vieira é aquilo a que a investigadora chama Notas Diversas, que atravessa duas décadas do trajecto do escritor, entre os 20 e os 40 anos de idade. “Fragmentos que ele vai animando”, às vezes apontamentos “sobre livros que estava a escrever”, o que permite vislumbrar os bastidores do trabalho conhecido e do que não chegou a ser publicado.

A grande busca, no entanto, é por um manuscrito desaparecido, o Memorial de um Construtor de Nuvens, o mais próximo que se imagina de um balanço redigido na primeira pessoa. “A minha esperança é que ainda venha a aparecer”, afirma Cristina Nobre, “porque de certeza contaria muitos factos da vida do Afonso Lopes Vieira” e “iluminaria muito da história da censura [pelo aparelho do Estado Novo] e da censura que lhe calhou a ele”.

Um instrumento essencial para um outro restauro, o restauro biográfico.