Viver

E diziam que, em Leiria, não havia nada para fazer

12 jan 2017 00:00

“Depois dizes que não há nada para fazer” era o lema da 'Preguiça Magazine', um caso sério de popularidade em termos de publicações de divulgação cultural, nascido e criado em Leiria, para demonstrar que a cidade do Lis tinha uma “movida cultural”

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Jacinto Silva Duro

Mas popularidade nem sempre é sinónimo de sucesso e a Preguiça acabou 13 dias antes de celebrar o seu quarto aniversário.

A Preguiça, magazine finado a 29 de Dezembro de 2016, na sua mansão da Guimarota, ressuscitou por breves momentos, para, além-túmulo e já no cais de embarque para a barca de Caronte, nos vir pedir uma moedinha para pagar ao barqueiro.

Palavra puxa conversa e demos por nós a falar sobre as maleitas que levaram ao processo de falecimento do bicho cultural, único na fauna de Leiria. Ficámos a saber que foi um ataque de cirrose apática, temperado com gripe aviária, a aliviar a Preguiça da sua concha terrena e ficámos inteirados dos planos futuros, em termos de carreira, do magazine.

Resumidamente, a Preguiça, longe de ficar a apodrecer ao longo da eternidade, pretende tomar de assalto cada um dos sete círculos do mundo das trevas e abrir, nos domínios de Hádes, um franchise cultural hardcore, juntando todos os jornalistas, poetas, criativos, artistas plásticos e escribas em geral que se encontram a jusante do rio Stix. Será algo de infernal.

Mas chega de brincadeiras. Publicamos aqui a entrevista possível a partir das respostas da equipa que, desde 10 de Janeiro de 2013, ajudou a tornar Leiria num sítio muito mais sexy, mostrando o quão errados estavam aqueles que, por falta de informação ou má formação, diziam que “não havia nada para fazer”.

Cláudio Garcia, Paula Lagoa, Pedro Miguel e Ricardo Graça eram os “preguiçosos”, alucinados por Belzebu, que, com muito humor e criatividade, trabalharam arduamente, sempre pro bono, para dar a conhecer uma cidade pouco divulgada e que merecia estar sob as luzes dos holofotes.

ENTREVISTA
Preguiça,um magazine muito cool e falecido
“A Preguiça é como todas as estrelas rock: parece imortal e é mesmo
"

A Preguiça Magazine, como diriam os Monty Python, feneceu mesmo? É uma ex-Preguiça? Uma Preguiça morta? Bateu as botas? Ou, como afirmou outro conhecido “humorista”, Mark Twain, as notícias da sua morte “são manifestamente exageradas"?

Perguntar se a Preguiça feneceu é como perguntar se o Elvis está vivo. O que é a morte, afinal? As pessoas que vemos estão realmente vivas? Ou feneceram sem se aperceberem? E quando é que sai o filme novo do Shyamalan sobre aquela cidade que vive numa bolha? O que sabemos é que a Preguiçacomo a conhecemos já não existe – e aliás estar morto é o contrário de estar vivo, é o que dizem na zona VIP. A propósito, o consumo de cocaína aumentou em Almada e diminuiu no Porto e em Lisboa.

De que maleita padeceu e foi sepultada? Gripe aviária? Peste bubónica ou da pior de todas as enfermidades: indiferença?
Cirrose apática, a autópsia confirma. E também um bocadinho de H1N1, mas da colheita de 2016. É a pior, não há Tamiflu que nos acuda. Indiferença? Nunca. Só amor e magia até ao fim, uma viagem inesquecível de ascensor a descer. Podemos confirmar que morreu pacificamente em agonia rodeada por 70 virgens. No fundo, a Preguiça é como todas as estrelas rock: parece imortal e é mesmo. Será atirada para o Panteão a instalar no Centro Cívico de Leiria.

O vosso magazine online e as duas versões de luxo, em papel, foram muito elogiadas, não apenas pelo estilo leve e descomprometido de linguagem, mas também como exemplo de comunicação social de hiperproximidade bem sucedida. Se a componente da comunicação era boa, faltou o modelo de negócio? O que poderia ter sido diferente?
Atenção que a Preguiça é um luxo em qualquer formato. Temos das regiões mais dinâmicas do País a nível empresarial, mas não quiseram saber disto nem para lavar dinheiro… uma vergonha! Algumas delas, fizeramnos propostas de pagamento sob a forma de géneros, à antiga, portanto. Alguém que os avise que já se cunha moeda desde o ano 700 antes de Cristo. Mais do que um modelo de negócio, faltou-nos um modelo no negócio, ou o nosso negócio ser de modelos, ninguém percebeu muito bem. Um dia destes, alguém nos disse que tinha as revistas quase todas, que tinha a colecção quase completa, mas faltava-lhe ainda algumas, e que queria comprar as que faltavam. Não sabíamos se se referia a ambas as duas ou às restantes, que é só uma, e isso é um erro gramatical que não toleramos. Parecendo que não, é uma hiperproximidade que nos afasta um bocadinho.

Quando e como foi que perceberam que não havia condições para continuar?
Foi numa noite de Verão como outra qualquer em que não se passava nada, tínhamos acabado de praticar vários tipos de coito arrojados numa orgia intelectual para os lados dos Milagres, estávamos à rasca das costas (ficámos muitas vezes por baixo), fomos à varanda fumar e pareceu-nos ver uma nave com vários porcos de oiro de cera em movimentações agressivas no céu. A partir daí foi difícil levantar o... moral. Também não conseguíamos chegar ao sitio onde estavam as feridas para as lamber. Acabámos por ficar nos Milagres de mola no nariz.

“Carolice” é uma palavra que deveria ser abolida do vocabulário de algumas pessoas em cargos de poder e empresas?
Só pratica a carolice quem quer, não há mal nenhum nisso, antes pelo contrário, a Preguiça também o fez, enquanto assim o entendeu, e com gosto pela cidade de que todos gostamos. Mas este mundo da carolice é estranho. Se estamos sozinhos, sozinhos estamos. Mas vamos supor que estamos a trabalhar num determinado evento, em parceria com a autarquia ou com uma empresa. O que acontece é que tens no mesmo espaço, a trabalhar na mesma coisa, pessoas remuneradas e outras não. A certa altura, deixa de fazer sentido, percebes? Uma coisa é ser só de vez em quando e até sabe bem para desanuviar, ter novas experiências, conhecer novas pessoas, mas vais andar a vida nisto? Depois a costela mais revolucionária que tens em ti dá sinal e vemte à memória o Salgueiro Maia que disse: "... como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos". E aí tomas uma decisão. Mas cada um sabe de si, naturalmente.

Quem foram os vossos maiores apoiantes? Que apoios receberam (palmadinhas nas costas, incluídas)?
Sai uma pilha de nomes em modo caderno eleitoral! Leitores, colaboradores, músicos, artistas, gente que andou com caixas às costas, que escreveu, fotografou, ilustrou, videogravou, até designers! Vejam bem, designers! E municípios e empresas e outras associações culturais. Quem ajudou sabe que ajudou e sabe que aPreguiça está grata até morrer mesmo já tendo morrido. Quem não ajudou sabe que não ajudou e, esses sim, merecem uma palmadinha nas costas.

Foram afectados pelo Síndroma de Comércio Local/ Auditu?
Ainda bem que nos faz essa pergunta. Quando a Auditu fechou, a Preguiça Magazine fez a reportagem do fecho. Houve muitos lamentos, muitos arrependimentos por não terem ido lá mais vezes, choraram-se as pedras da calçada. Pois bem, a Auditu reabriu, e essas mesmas pessoas que manifestaram o seu pesar, apesar de terem tido literalmente uma segunda oportunidade, não meteram lá as sapatilhas na mesma. A complexidade desta malta é algo que nos ultrapassa.

Sentem que o projecto Leiria Capital Europeia da Cultura 2027 ficou comprometido, com o falecimento da Preguiça Magazine?
Felizmente para Leiria, a Capital Europeia da Cultura 2027 não depende da Preguiça Magazine ou seria, com toda a certeza, um aparatoso acidente. Mas já o Thom Yorke cantava: we are accidents waiting to happen. Enquanto não chega o INEM, ficamos à espera para ver se alguém tem coragem de fazer uma capital da cultura como deve ser feita: uma coisa da cidade (e não da região), feita pelas pessoas da cidade (e não por actores nacionais), alimentada por criativos (e não pelas forças vivas, sinergias e zonas cinzentas sem sal institucionais burocráticas do costume), capaz de projectar uma ideia de futuro (ou seja, de se borrifar nas tradições, na morcela de arroz e na arte sacra embrulhada em papel celofane) e com a consciência que Leiria é muito fixe, mas não é a única bolacha no pacote. É fácil: só temos de mostrar ao mundo – ok, à Europa... – que estamos a ver o dia de amanhã antes de todos os outros.

O que vai acontecer agora à parte mais física da Preguiça, a Preguiça Associação Criativa e ao seu Covil?
Andamos a pedir orçamentos a taxidermistas, tentámos com um tutorial do Youtube e já demos cabo de uma perna, mas o objectivo é figurar na exposição temporária para sempre do Museu de Leiria. Em relação ao Covil: devolver às proprietárias, que nunca se negaram a apoiar – com acções concretas – a Preguiça. Daqui o nosso gigantesco obrigado. E esperar que elas não se apercebam que nós não sabíamos prender quadros às paredes.

Em 2013, quando a Preguiça chegou, em entrevista ao JORNAL DE LEIRIA, afirmaram que iriam ficar ricos na semana seguinte, graças ao sucesso da magazine. E agora? O que vão fazer para atingir esse fim? Candidatar-se ao cargo de programador cultural de Leiria?
Programador cultural não, porque é uma profissão sem saídas profissionais em Leiria e nós somos pessoas que gostamos de ter saída. Portanto, vamos concorrer ao cargo de governador civil, que está extinto, mas primeiro queremos conquistar a Câmara e iniciar reuniões com os munícipes no relvado do estádio municipal, com serviço de catering e prova de vinhos. E se aparecer alguém de Almada, mais qualquer coisa.

Correcção às 17:04 horas, de 13 de Janeiro de 2017 - onde se lia "flora de Leiria" dever-se-ia ler "fauna de Leiria".

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