Entrevista

Rodrigo Koxa: “Questionei os vídeos do Garrett McNamara e pensei que ele era muito malandro”

8 nov 2018 13:49

A onda de 24,38 metros que o brasileiro surfou há um ano colocou-o nas bocas do mundo. Mas o percurso até chegar ao recorde mundial não foi fácil. O medo chegou a tomar conta da alma do desportista

Rodrigo Koxa
Ricardo Graça

Faz esta quinta-feira, dia 8, precisamente um ano que surfou aquela onda que lhe valeu um lugar no Guinness Book of Records. O feito mudou-lhe a vida?

É incrível. Hoje vivo um sonho, porque há muito tempo que trabalho com o objectivo de surfar ondas grandes. Comecei com oito anos e com dez já entrava em competições. Com 12 anos venci o primeiro campeonato, mas logo a seguir deixei de me dar bem em provas. O que me ajudou, na verdade. Com 14 anos li um artigo que falava de big riders, surfistas que corriam o mundo para surfar ondas grandes. Fiquei encantado com aqueles caras que viajavam para fazer documentários e sem precisar de competir. Desde muito novo senti uma desconexão entre o amor que sentia pelo surf e a obrigação de ter de vencer campeonatos. 

E foi fácil convencer a família?

Tive sorte. A minha mãe é psicóloga e entende a importância de trabalhar o que a alma pede. Foi sempre muito positiva, apoiou muito e se não fosse ela acho que não teria hoje essa placa de reconhecimento. No fundo, ela lutou contra a família. O meu pai, muito conservador, sempre me apoiou no futebol. Jogou à bola profissionalmente e queria ver-me nesse meio. Aos sete anos eu jogava em três equipas ao mesmo tempo. No fim-de-semana tinha jogos e era frustrante para ele perceber que preferia ficar na praia a surfar.

Mas lá teve de aceitar

Quando li aquela matéria percebi que tinha de viajar, porque no Guarujá, de onde sou, não há ondas grandes. Na altura, esse tipo de surf não era reconhecido, não havia redes sociais para divulgar. Por isso, era uma época difícil para convencer a família. Os meus pais não surfam, o meu pai nada sabe de surf, mas acabou por entender a minha gana de aprender. Por isso, com 15 anos comecei a viajar com amigos. Era o mais novo. Fui para o México e para a Indonésia muitas vezes, morei no Taiti, morei no Havai… Foi interessante, porque na segunda temporada em que fui para o Havai, em 2000, conheci o Garrett McNamara. 

Que acaba por ser quase omnipresente na sua carreira.

Muito grande. Logo que o conheci mostrei o quanto era fã. Ele sentiu essa energia e convidou-me para morar em casa dele. Ele alugava quartos para vários japoneses com uma condição melhor do que a minha, mas viu que eu era um brasileiro cheio de vontade e paixão. Disse-me que na casa dele não dava, mas que havia um contentor no quintal, sem janelas e com pouca ventilação, mas que podia lá ficar. E lá fiquei, sem pagar, e mesmo assim sentia-me parte da família, porque tinha de usar a casa de banho e a cozinha deles. 

Como reagiu ele ao facto de ter sido o Rodrigo a suceder-lhe enquanto recordista?

Foi surpreendente. Estava em Santa Mónica, em 20 de Abril, e mal dormi após receber o prémio XXL da maior onda surfada e saber que tinha batido o recorde mundial. Ainda era madrugada e estava a ver as redes sociais quando vi a publicação do Garrett a dizer que ninguém merecia mais do que eu. As palavras dele foram muito boas: falou do período em que morei na casa dele e da minha humildade. Os recordes são para ser batidos e eu não roubei nada, muito pelo contrário, ele foi uma inspiração. Quando me perguntam quem é o meu mestre, a primeira imagem que surge é ele. E é gostoso quando a pessoa que mais admiramos faz uma publicação daquelas. Nesta nova era da internet é assim que recolhemos o carinho.

O recorde era um objectivo que tinha em mente?

Jamais imaginei bater um recorde. A felicidade do ser humano é estar no caminho. Temos momentos de felicidade, mas também sofremos, somos testados e chegamos a questionar se é mesmo isto que queremos. E é tudo isso que faz com que aquele momento seja especial. Ainda bem que nunca consegui ter a visão de que iria bater o recorde, porque isso fez com que questionasse muitas coisas, me avariasse de várias maneiras e buscasse a minha essência. 

Foi através do Garrett McNamara que conheceu a Nazaré?

Conheci a Nazaré no XXL de 2012. O Garrett tinha acabado de surfar a onda de onze do onze de dois mil e onze na Praia do Norte, que ninguém conhecia, e venceu o prémio da maior onda surfada, ainda por cima batendo o recorde mundial, com 78 pés (23,77 metros). Uma imagem incrível!

Recordista e futuro português

Aos 39 anos, Rodrigo Koxa está há precisamente um ano a viver um sonho, mais concretamente desde que surfou aquela enorme massa de água na Nazaré. O lugar no Guinness Book foi confirmado em Abril, nos XXL Big Wave Awards, e a vida nunca mais foi a mesma, com os focos mediáticos a incidirem sobre a sua vida. Natural de Guarujá, na costa de São Paulo, no Brasil, desde muito cedo se fixou na ideia de viver para o mar.

“Os meus pais sempre estudaram e eu, por várias vezes, suspendi a matrícula da universidade quando sabia que ia haver ondas grandes e assim poder viajar. Comecei Turismo, comecei Propaganda e Marketing, comecei Jornalismo e tranquei sempre a matrícula. A última foi Educação Física, já estava no terceiro ano, veio um swell e suspendi de novo. O surf falou sempre mais alto e eu sempre fui aberto a receber os chamamentos da minha alma”, revelou, em entrevista ao JORNAL DE LEIRIA.

“O recordista mundial de ondas grandes vai virar português”, revelou, entre sorrisos, Rodrigo Koxa. “Sempre soube que tinha um avô português, que morreu antes de eu nascer, e desde que comecei a vir para a Nazaré cogitei pedir a nacionalidade portuguesa. A certidão de nascimento, que se tinha perdido, chegou ao meu pai na semana passada. O meu avô era de Penedono, mais especificamente da aldeia de Antas, e agora quero conhecer as minhas raízes. Sei muito pouco dele, era uma pessoa muito fechada, que saiu de Portugal com 17 anos para fugir da guerra. Agora, quero resgatar essa história.”

Garrett McNamara deu novos mundo ao mundo...

Não foi ele quem descobriu, mas foi o especialista convidado para mostrar o potencial de surfar em dia de mar gigante. Foi incrível como naquela situação até eu próprio questionei o Garrett e os seus vídeos, porque em todos se ouvia transmissões com rádio. “Pipi, pipi, primeiro pico, segundo pico, backup, backup do backup, porto do abrigo, armazém...” Pensei que ele era muito malandro, que estava a fazer aquilo para atrair grandes patrocinadores e a atenção da comunicação social. No fundo, que queria fazer da Nazaré a Fórmula 1 do surf. Lembro-me de ter pensado que conseguia fazer o que ele tinha feito apenas com um jetski e um companheiro. Nunca tinha precisado de rádio, nem de toda aquela estrutura. 

E quando percebeu que não era showoff?

Na altura, aquele potencial todo abriu os olhos de muitos big riders e eu pensei que tinha de vir também. Em 2013 decidi esperar pelo swell e vir. Quando cheguei e vi o local de frente, do mar para terra, percebi que as maiores ondas vinham de frente para o farol. Foi então que percebi que aquilo que o Garrett McNamara falava não era malandragem. Ainda surfei duas vezes, com muito medo, e tive sorte de não me acontecer nada. Fui para o Brasil alucinado e comecei a investir no protocolo que ele criou.

Voltou no ano seguinte, em 2014, e tudo podia ter acabado em tragédia.

Um dos meus colegas quase se afogou e fui eu quem o salvou. Queria levá-lo para o hospital, mas ele disse que não era preciso, para voltar para o mar. Fiquei num dilema. “Vou surfar sem backup ou vou embora?” Optei por ficar e foi aí que começou o problema. Surfo uma onda gigante, não caí, mas era tudo muito novo, estávamos ainda a conhecer o local. A onda de trás pega-me, apanho com quatro ondas seguidas na cabeça e aproximo-me muito do paredão. Fiquei com muito medo, porque temos treino de apneia, temos treino para ficar debaixo de água, mas não temos treino para bater nessas pedras. 

Pensou que ia morrer?

Sim, de repente vivi uma situação de quase morte. Comecei a lembrar-me da parte espiritual do lugar, que é muito forte. Pensei que era de um milagre que eu precisava, que não era ninguém e que estava vulnerável perante a força do mar. Lembrei-me da família e pedi com muita fé que queria viver. E, como que por milagre, durante 30 ou 40 segundos deixaram de vir ondas. Começo a ser empurrado para a praia, lentamente, e saí do mar com as pernas a tremer. Chorei e percebi que a fase crescente que estava a viver podia matar-me. 

E como conseguiu dar a volta ao medo?

Foi difícil. Quase morri e quase desisti do meu sonho, porque fiquei com medo de surfar ondas grandes. Voltei para o Brasil muito abalado. Comecei a ter pesadelos todas as noites e acordava a suar. Sonhava até que estava nas praias do Guarujá, que nem ondas grandes têm, e de repente estava no meio das pedras. Fui diagnosticado com transtorno de stress pós-traumático. Fiz catarse, busquei a minha essência e a minha mãe, que é psicoterapeuta quântica, disse que o que fiz foi muito importante, pois salvei a vida de um amigo. A minha mulher disse que tinha de ter calma e permitir-me esse tempo. Foram dois anos difíceis, em que tive de me abrir com a minha equipa, admiti que estava com medo, mas que queria voltar a surfar. Disse que queria voltar a Portugal logo no início da temporada para treinarmos juntos e estabelecer confiança, porque me sentia abandonado. Foi assim que as coisas começaram a alinhar-se. Investimos nas melhores pranchas, no material de segurança, e em 2016 já me sentia melhor. 

E é já com a situação normalizada que chega o dia 8 de Novembro de 2017.

Na noite anterior, fui deitar-me eram umas oito da noite. Sabíamos que o mar ia estar gigante, havia muito gente a falar, mas eu mantive-me quieto. Fui para o quarto e estava deitado na cama quando comecei a receber uma mensagem forte na minha cabeça: “a onda vai chegar e quando vier desce recto”. Ora, descer recto não é o nosso protocolo. “Eu vou descer, mas recto não, calma!” Nós descemos a cruzar a onda. De manhã, estava com o meu parceiro Sérgio Cosme no porto de abrigo e lembro-me que chegou uma dupla a dizer que estava muito vento. Blindei a informação e mantive o foco, porque nada podia interferir no meu campo. Respeito, entendo, mas o mar está como eu o vejo. Tenho uma ferramenta, a que chamo ancoragem, que me leva de volta a tudo o que sou e ao meu conhecimento. Não vou trocar o que eu vejo pelo que os outros vêem.

E dirigiu-se ao pico.

O mar estava muito grande e estávamos há duas horas à espera de uma bomba. De repente chega uma série enorme e vemos um autêntico prédio. Quando solto a corda começo a trocar de borda para me manter, mas depois pensei que se continuasse a usar o protocolo não seria tão especial, porque iria perder a energia da onda. E lembrei-me da mensagem, do sonho acordado, e pensei: “desce recto”. Viro, quase caio e desço como uma flecha. Atrás de mim ficou uma muralha. Era meio-dia e de repente fico na sombra e ouço a onda a explodir. Tinha um monstro atrás de mim! O mundo das ondas grandes parece uma brincadeira de crianças. Todos querem ficar perto do monstro, mas depois saem dali a correr. Quando saio da onda vejo o Sérgio para me resgatar. Comecei a comemorar, mas ele ficou bravo, porque viu-me deslumbrado e o resgate tinha de ser feito. Estava aí a diferença: treinámos muito e sabia que ele ia fazer a parte que lhe competia. 
 
Sentiu que podia ser a maior onda alguma vez surfada?

Tive logo a noção de que tinha surfado a maior onda da minha vida. Quando chegámos ao porto de abrigo ficava maluco a cada vídeo e foto que via. Depois, tivemos de esperar até 20 de Março para saber que era uma das cinco ondas finalistas e mais um mês para ir à Califórnia. Foi incrível quando ouvi que a maior onda, quebrando um novo recorde do Guinness Book, de 80 pés (24,38 metros), era de Rodrigo Koxa. Até agora estou alucinado. Ver este certificado é a realização do sonho de uma vida inteira. Sei que ainda vou contar esta história várias vezes e com um sorriso no rosto de enorme gratidão. Tem muita gente por detrás disto. O que se consegue de grande não se consegue sozinho.

O recorde mudou de mãos, mas o local é o mesmo. É a Nazaré o local certo para isso voltar a acontecer?

Disso tenho a certeza. Este desfiladeiro submarino gigante faz com que uma enorme ondulação de dez metros se transforme numa de vinte e uma de vinte se transforme numa de quarenta. Os mais destemidos big riders escolhem a Nazaré para viver esse sonho durante o período das tormentas, ainda por cima amparados por uma Câmara que dá todo o suporte e a quem estamos gratos. Este farol mostra todo o respeito que o concelho tem pelos surfistas, que mudaram o turismo da vila. Na fila da emigração percebemos que as pessoas visitam Lisboa, Porto, Fátima e… Nazaré. É um local de muita energia espiritual e de muitas histórias. Tenho muito respeito pelos pescadores que morreram nestas ondas, que também viveram os medos deles nestes mares e é também em nome deles que tentamos levar mais longe o nome da Nazaré, porque temos a certeza que desta forma estamos a ajudar a família deles também.