Entrevista

Fernando Dacosta: “A bisbilhotice dos cafés é a grande fonte de crítica e de conhecimento que temos”

26 dez 2019 09:27

O jornalista e escritor diz que o jornalismo passa por uma crise que afecta a Democracia, um regime que entende precisar de renovação urgente, perante o populismo actual. Afirma ainda que a censura não desapareceu, apenas se privatizou

Fernando Dacosta conviveu nas Redacções por onde passou com José Cardoso Pires, Saramago, Luís de Sttau Monteiro, Urbano Tavares Rodrigues e Natália Correia
Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

Enquanto jornalista, que balanço faz de 2019?

Para o jornalismo, foi um ano catastrófico, tal como foi para a profissão. Por várias razões. Uma delas é a desvalorização da palavra escrita dos livros e dos jornais... A palavra escrita é a grande trincheira contra a prepotência e a falta de liberdade. Há que queimá-la e substituí-la pela imagem das televisões, que as pessoas não fixam. A imagem passa e a palavra entra e tem maior durabilidade na mente. Outra é a concentração dos jornais e dos outros órgãos de comunicação social. Lembro-me de ter alertado para o perigo o doutor Mário Soares, quando ele era primeiro-ministro, já nos anos 80. Foi a primeira machadada na Democracia... Ao contrário do que para aí se diz, a censura não acabou com o 25 de Abril, mas foi privatizada. Deixou de ser exercida pelo Estado para o ser pelas Administrações, Direcções e capangas dos órgãos de comunicação.

Como?

Ao imporem o modelo anglo-saxónico da informação, que é um disparate que nada tem que ver connosco, nem com a nossa língua, conseguiram interiorizar a auto-censura. Defende-se a ideia de que o jornalista não tem opinião. Qual quê! Toda a gente tem opinião; não há coisas neutras! Aquela mania da "objectividade"? Não há objectividade alguma! E a mania dos "factos"? Não há factos alguns! O que há é a interpretação de factos e o que deve sempre existir é a seriedade de quem o faz, porque a coisa mais importante no jornalismo, é o jornalista. Num restaurante, não é o cozinheiro o mais importante? Durante a Ditadura, de maneira geral, os jornalistas nos jornais nacionais sempre foram muito independentes e tiveram um papel de grande luta contra ela, contra as manipulações ou contra as falsas notícias - agora é moda falar nelas, mas elas sempre existiram… Essa história de que só se deve dar uma notícia após se ter confirmado pelas fonte? Como em Portugal é tudo uma data de manhosos e ninguém confirma ou dá a cara para nada, se fossemos obedecer a essa regra, hoje, não sairia para a rua um único jornal. Tínhamos de contornar essas coisas.

Contornar?

Tudo dependia da qualidade e seriedade do jornalista. Era aí que se investia. Nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida, como antes do 25 de Abril, no Diário de Lisboa. Ganhava 17 contos por mês, quando o ordenado médio eram 4 ou 5. A primeira que nos fizeram, após o 25 de Abril, foi tirar-nos o ordenado para aumentar as mulheres-a-dias, e criar a figura da "comunicação social". Deixou de se falar em jornalismo, que foi varrido para debaixo do tapete, e surgiu esse palavrão. Até hoje, não sei se a comunicação social são os telefones, as pontes, os autocarros ou os comboios. Só sei que é uma aldrabice, um guarda-sol para proteger todo o tipo de safadezas, vigarices e manipulações. A profissão também foi marginalizada. Eram os jornalistas quem mandava nos jornais. Tínhamos um estatuto importante na sociedade e, nos últimos anos, precarizaram-nos. Cortaram os salários e criaram a figura do “jornalista a Recibo Verde”... a prazo. Ora, um jornalista a prazo não tem qualquer autonomia numa Redacção. Não pode recusar serviços, sob pena de não lhe renovarem o contrato. Não me admira que vendam tão pouco! O que me admira é que ainda haja tansos que comprem aquela porcaria. O Diário Popular vendia 180 mil exemplares por dia e o Diário de Notícias, quando saía para a rua, já tinha um lucro de seis escudos por jornal, mesmo que não vendesse nenhum. Dá para ver a força que a imprensa tinha.

Mas este fenómeno também acontece noutros países.

Se fosse apenas em Portugal, estávamos nós bem. É óbvio que isto foi copiado do que se fez no resto do Mundo. O online e a ideia de que as notícias são gratuitas também contribuiu? Estamos a assistir a uma mudança nas tecnologias. E elas estão a dar voz a pessoas que não a tinham. É vantajoso por um lado e, por outro, é nocivo, pois diminuiu ainda mais o papel do jornalista. Na Internet, qualquer um pode comunicar. Não há códigos deontológicos, não há seriedade. As pessoas escrevem o que lhes dá na mona. Claro que afogar o público em informação, também dá jeito a quem manda. Estamos a assistir a um retrocesso civilizacional na cultura e do ponto de vista das relações humanas. É evidente que isto é uma fase em que estamos, com as pessoas a procurar outras vias e saídas. Sempre foi assim ao longo da história humana. Mas voltando a Portugal, esta crise nos media favorece os jornais que estão fora desta malha: os regionais.

“Não faz sentido estar-se a trabalhar dez ou 12 horas por dia… Se só se trabalhasse quatro horas, dar-se-ia trabalho a mais pessoas e haveria tempo livre para as famílias e para nós próprios“
Fernando Dacosta

Favorece?
Pode-se começar a fazer experiências porque há espaços para onde a imprensa regional pode avançar. Recordo-me que, em meados da década de 60, foi através dos jornais regionais que se divulgou muita informação. Veja-se o Jornal do Fundão, liderado por um homem excepcional, o António Paulouro, ou o Comércio do Funchal, com o Vicente Jorge Silva, que é louco, mas é um tipo de génio. Cobriam o noticiário local mas, ao mesmo tempo, foram buscar colaborações de grandes vultos da cultura de Portugal e do Brasil. Por outro lado, o New York Times fechou o ano passado com 230 milhões de dólares de lucro. O que se passa, na grande imprensa, é que os jornais mudaram. Ninguém compra um jornal para ler uma notícia. É preciso mudar o paradigma. É preciso investir na qualidade da Redacção e em formatos mais exigentes, com menores tiragens e preço mais caro, mas de comprovada qualidade. Têm de perder a mania das massificações, porque, quando se facilita, baixa-se a qualidade. Nos Estados Unidos estão a fazer tentativas muito interessantes nesse sentido, com abordagens sectoriais, desinadas, por vezes, a nichos. É precisa visão e vontade. A Direcção dos jornais está entregue a administradores e não a jornalistas. Não estão lá pela sua competência cultural e cívica, quando, antigamente, essas pessoas eram figuras de grande relevo cultural e social. Tenho de citar o que dizia o General Eanes aos jornalistas: "não sejam heróis todos os dias. Dá mau resultado. Tentem resistir". Hoje, é esse o nosso papel: tentar resistir. Estes avanços da extrema-direita. Estes ataques à Democracia, por exemplo, são um fluir por que todos passamos.

Nas últimas Legislativas, em várias ocasiões, houve candidatos a fazer promessas eleitorais que violam a Constituição da República e os Direitos Humanos. Essas afirmações foram transmitidas nos media, ipsis verbis, sem que fossem questionadas. O papel do jornalista é ser pé-de-microfone que não contextualiza, não contrapõe? É o que se ensina nas Faculdades ou é o que as Redacções exigem?

As Faculdades são um grande bluff! Formatam pés-de-microfone. Fui falar a muitas delas sobre jornalismo e discordo completamente do que é lá ensinado. Andam a enganar os alunos com propinas caríssimas e dão-lhes noções que não têm ligação à realidade e aos jornais. Varrem completamente o pensamento. Esta Democracia aposta no processo de criar carneiros; as pessoas são muito boas a cumprir, mas não pensam ou fazem escolhas. Esta história de se dizer que esta é "a melhor geração", "a mais preparada" é andar a gozar com as pessoas. De facto, os alunos, em termos de especialização, estão provavelmente mais avançados mas, de cultura geral, pensamento, língua, relacionamento de conhecimentos, são zero. Não sabem nada de nada e os que são jornalistas têm medo. Não fazem perguntas porque têm medo. Medo de desagradar, medo de perder o contrato - ou o Recibo Verde - ou têm compromissos.

“Esta Democracia aposta no processo de criar carneiros”
Fernando Dacosta

É evidente que nem só a carne e a carteira são fracas, o estômago também o é e as pessoas têm de viver, com ordenados que são baixíssimos, o que torna as pessoas dependentes e manipuláveis. Tenho visto que as televisões tentam reagir, com algumas grandes reportagens e denúncias. No entanto, desconfio que a investigação que se faz está viciada, porque não é feita pelo jornalista. É dada ao órgão de comunicação por gente com interesses. Recordo-me, quando estava no Público e o Vicente Jorge Silva era director, que apareceu lá um certo senhor, a denunciar um escândalo de um ministro. E o Vicente mandou-o passear. Esse senhor, foi ter com O Independente e fez um estardalhaço e o ministro caiu. Mas isso não é correcto. Um jornal que se preste a isso, está a ser manipulado. Hoje, quais são os media com capacidade para fazer investigação? A ditadura resolvia os problemas pela força, silêncio e repressão. Era pão-pão, queijo-queijo. Nas democracias, parece mal fazer-se isso. A maneira mais fácil de controlar a imprensa é pela via económica e pelo excesso de informação. Se entrar num sítio de silêncio, a sua atenção está focada. Se entrar numa boîte, com tudo aos berros, não ouve nada. Veja os debates políticos. Não se debate ou aprofunda nada.

“O primeiro encontro que tive com o Salazar foi à base de uvas, batatas e feijões”
Fernando Dacosta

As conversas de café, quando transformadas em discurso político têm mais interesse para o eleitor do que a opinião bem fundamentada?

Já dizia o Jorge de Sena que Portugal tem uma coisa que o salva: "a bisbilhotice dos cafés". É a grande universidade, a grande fonte de conhecimento e de crítica que temos. Quando se está no café, em conversas, por vezes, rasteirinhas, está-se a exercitar o espírito crítico e afirmativo. Antigamente, falava-se do Salazar, do Cerejeira… Hoje não há tertúlias, vamos criticar quem? O Costa? Nas tertúlias, não havia separação de gerações, como acontece hoje, onde a sociedade foi fatiada; novos para um lado, velhos para o outro. Psicologicamente, isto é terrível. Frequentei a tertúlia d'A Brasileira e o Aquilino e o Almada convidavam-me para estar à mesa deles. Falavam connosco como se fôssemos iguais. Isso era extremamente enriquecedor, tanto para nós, que tínhamos aquele privilégio de ouvir aqueles indivíduos que estavam a par das organizações internacionais e das grandes ideias que nos interessavam, e para eles, para saberem como eram os jovens que estavam a surgir. E os jornais eram habitados por grandes vultos das artes plásticas, da literatura, da política, etc.

Foi José Cardoso Pires quem o convidou...

Para ir para o Diário de Lisboa. Ainda há dias estava num debate e alguém dizia, que antigamente, os jornalistas eram todos analfabetos… Sim, eu trabalhei com analfabetos. Com o analfabeto do José Saramago, durante uns anos. Trabalhei com o analfabeto do Urbano Tavares Rodrigues, com o analfabeto do José Cardoso Pires, com o analfabeto do Luís de Sttau Monteiro, com a analfabeta da Natália Correia… O jornalismo não é só a notícia, havia ainda a crónica, a reportagem, o editorial, a entrevista… Tinha outras vertentes. O que acontece é que, quem é bom na escrita, não costuma ser bom a recolher informação. Recordo-me que o Borges Coelho, um grande historiador, não tinha jeito para aquilo e escrevia maravilhosamente. Por outro lado, havia uns tipos geniais a sacar coisas. O Manuel Pincel, o João Carlos Charneca… Era fascinante a maneira como eles falavam com os polícias e sacavam tudo. Havia uma simbiose nas redacções. A Der Spiegel vai buscar 60% dos seus jornalistas às Faculdades, 20% às escolas técnicas e os outros são quase analfabetos. O objectivo é ter visões diferentes, na Redacção, pois, como o público é diversificado, eles também diversificam a maneira de interpretar a sociedade.

Quais são os grandes desafios que se irão colocar a Portugal, em 2020?

Haverá desafios para todo o Mundo. O maior será reformular a Democracia. Isso é fundamental. Maria de Lurdes Pintasilgo foi a primeira entre nós a falar dessa necessidade. Caiu em desgraça e foi perseguida. Dizia que a Democracia era um ponto de partida e não de chegada. Em 1974, quando o modelo democrático foi instaurado, já estava quase esgotado e era preciso avançar para outros processos. Não foi nada feito e a Globalização aproximou cada vez mais os poderes e alargou o fosso. Portugal ainda irá continuar mais um tempo nesta mediocridadezinha onde estamos, porque não aposta naquilo que poderia fazer alterar as coisas. Por exemplo, na última campanha eleitoral, não houve um candidato que falasse na Cultura. Veja a vergonha que é o Ministério da Cultura. A vergonha que é o Teatro Nacional não ter uma companhia residente. É uma casa de passe. Passam grupos, passam, passam. E se a imprensa Nacional Casa da Moeda editasse as obras que não são comerciais? Foi tudo entregue ao "mercado", mas o "mercado" está-se nas tintas para a qualidade. Quer é vender. Este Estado não dá quaisquer apoios aos criadores. Dantes havia uma série de prémios que eram uma maneira de apoiar os criativos. Hoje, isso desapareceu tudo.

“A censura não acabou com o 25 de Abril”
Fernando Dacosta

O Ministério da Cultura só se preocupa em manter o estado das coisas, porque não quer que as pessoas pensem e intervenham. O que se faz? Fomenta-se a fuga. Vem-se com a aldrabice de que Portugal tem falta de natalidade. Por que é que querem mais pessoas? Portugal foi grande no Mundo, quando tinha três milhões de pessoas. Portugal não tem condições para ter mais do que seis ou sete milhões de habitantes. Quando temos mais, exportamo-los como se fossem vacas. A informática e a automação alterou o conceito do trabalho. Estamos a passar da era do trabalho escravizador, para a era do trabalho criativo, libertador... O professor Agostinho da Silva anteviu isto. Não faz sentido estar-se a trabalhar dez ou 12 horas por dia… Se só se trabalhasse quatro horas, dar-se-ia trabalho a mais pessoas e haveria tempo livre para as famílias e para nós próprios. Não haveria este fosso. Nos últimos 50 anos, a Europa aumentou a sua riqueza em 47%, com menos 30% de trabalhadores! Portugal foi um patego que se enfeudou à Comunidade Europeia. Com o nosso provincianismo deslumbrado, comportámo-nos como os caseiros que somos recebidos na casa dos patrões. Temos um senhor na ONU a fazer não sei o quê, temos outros senhores muito contentes porque pertencemos à União Europeia e ela só nos está a explorar. Quando entrámos no euro, tivemos uma desvalorização na moeda de 300%. A Alemanha, a Inglaterra e a França, como sempre foram colonialistas e exploraram os outros, como não têm mais quem explorar, voltaram-se para o sul da Europa. Afogaram-nos em verbas, que não foram investidas, mas roubadas por meia-dúzia de galfarros, e agora cobram-nos os juros. Em 2020, vamos continuar na mesma. Os impostos aumentaram, com a vigarice de que a austeridade acabou, quando o poder de compra baixou mais de 170 euros, entre 2008 e agora. E os tipos do dinheiro cada vez têm mais, fogem mais aos impostos e corrompem mais. É assim que surgem radicalismos fascizantes!

Fernando Dacosta_2019_@Ricardo_Graça/Jornaldeleiria

“O Salazar foi a Fátima, encontrou lá a irmã Lúcia e não acreditou em nada daquilo”


Conheceu António de Oliveira Salazar e a famosa criada, Maria. Como eram eles?


Conheci-o quando era correspondente da imprensa estrangeira, em meados da década de 60. Motivado pela Guerra Colonial, o Salazar recebeu essa imprensa e eu fui, cheio de medo, porque a minha família era da Oposição e tive um tio no Tarrafal. Fui-lhe apresentado pela fotógrafa Beatriz Ferreira, como "o novo recruta da informação". Fiquei surpreendidíssimo porque ele era um indivíduo extremamente educado, de bom trato, muito atencioso embora frio e distante. Passado uns tempos, houve um segundo encontro e foi dessa vez que a dona Maria foi ter comigo e disse-me: "não se vá embora que o senhor doutor quer dar-lhe uma palavrinha". Fiquei aflito. Ela era de uma terra perto da terra da minha mãe e sabia tudo o que se passava. Era inteligentíssima e má como as cobras. Nunca conheci uma pessoa tão má. Batia nas criadas, batia nos miúdas, tratava mal e enganava até o Salazar.

É por isso que se diz que era ela quem mandava no País?

Eles fizeram um “Tratado de Tordesilhas”. De São Bento para fora, ele era o ditador. De São Bento Bento para dentro, era ela. E ele obedecia-lhe e tinha muita confiança nela. Ela, para ele, era uma espécie de voz do povo. Como ele detestava pessoas, quando ela ouvia coisas importantes, dizia-lhe e dava a sua opinião. Ela alterou muitas coisas. Até nomeações de ministros. Uns não o foram porque ela não gostava deles e outros foram-no porque ela insistiu. Nessa época, havia uma praga de míldio em Portugal e ele estava muito preocupado, sobre- tudo com o Alto Douro, porque gostava muito de vinho do Porto e a minha família era de vinhateiros. Quis saber, nessse segundo encontro, como estava a questão do míldio, depois das maçãs, depois isto, depois aquilo… O primeiro encontro que tive com o Salazar foi à base de uvas, batatas e feijões. Como tenho bom feitio e sou boa pessoa, a dona Maria engraçou comigo e quando havia alguma coisa e eu queria saber o que se estava a passar… Eu sabia que, pelas 17 horas, o Salazar interrompia o trabalho para ir dar um passeio pelo parque de São Bento. Ele tinha o modelo do aristocrata inglês: um palacete onde vivia e um bosque para passeios… Eu chegava um bocadinho antes das 17:30, tocava a campainha e pedia para falar com a senhora dona Maria de Jesus. Os pides ficavam logo à rasca e telefonavam-lhe. Ela tinha-lhes cá um pó. Eu subia e ela descia, sempre a barafustar com as vendedoras, com o preço das coisas, que estava tudo caríssimo, com esta política não sei quê, e a dizer mal da política… E ficávamos na conversa. Eu aproveitava os instantes quando ela parava para respirar e ia dizendo: "ó dona Maria, houve aí umas prisões...". E ela disparava: "pois! Esses malandros - os pides -, se eles o aborrecerem, diga-me que eu meto-os na ordem!" A PIDE nunca me levou a sério e nunca tive chatices. Perseguiam com grande e inteligente ferocidade as pessoas ligadas ao PCP e à esquerdas. Dos outros, o Salazar dizia que "conversas de café não fazem revoluções". Passado um bocadinho, aparecia o Salazar do seu passeio higiénico e de dar milho às suas 200 galinhas. E falávamos. Chegou a dizer-me: "o que me irrita nos seus amigos da Oposição não é a ideologia, mas a demagogia”, porque pro- metem às pessoas “uma vida acima das nossas possibilidades". Curiosamente, agora é a frase que todos repetem. Outra vez a dona Maria estava a dizer muito bem de um padre e ele respondeu: "esses... uma coisa é o que eles dizem e outra é o que fazem." Perdeu a fé...

“Na Internet, qualquer um pode comunicar. Não há códigos deontológicos, não há seriedade. As pessoas escrevem o que lhes dá na mona. Claro que afogar o público em informação, também dá jeito a quem manda
Fernando Dacosta

A relação dele com o cardeal Cerejeira era apenas uma amizade...

Formal. O Salazar não perdoou ao Cerejeira ter colocado os interesses do Vaticano acima dos da pátria. O Salazar foi a Fátima, encontrou lá a irmã Lúcia e não acreditou em nada daquilo. Achou-a uma doida. Só lá ia por questões formais. Ele era muito coscuvilheiro, gostava de saber quem dormia com quem. O mais curioso é que aquilo era tudo cenário. Andámos aterrorizados 40 anos, por um cenário muito alimentado pelo PCP e pela esquerda, a quem convinha ter um monstro, para valorizar a sua coragem. Ele era um tipo cheio de neuras; chegou a passar 15 dias sem sair do quarto a pensar a quem deixar o poder! Indicou o Teutónio Pereira para o substituir, mas soube, entretanto, que ele estava com cancro e lá saiu do quarto. O filho do Teutónio confirmou-me isto. E foi assim que o conheci e à dona Maria. Ela nunca gostou de ser fotografada e não havia praticamente fotografias dela. Após o 25 de Abril, ninguém a conhecia. Recordo-me que foi o Ricardo Espírito Santo quem a ajudou a comprar uma casa em Benfica. Mesmo com toda essa afabilidade, ele criou uma ditadura; um regime repressivo. Claro. Ele era contra a Democracia, de que dizia ser o pior regime. Admirava a figura do Estaline, mas era contra o Comunismo. E também contra o Capitalismo, por isso tentou uma terceira via, o Corporativismo, inspirado em tipos como o Mussolini. Mas ele cortou com o Mussolini. Não gostava de todos aqueles modos do italiano. No final da vida, também já não tinha paciência para a PIDE, nem para a geringonça que havia montado. Tentava afastar-se como se nada tivesse que ver com aquilo. Um crítico sueco escreveu sobre o meu livro As Máscaras de Salazar que a ditadura portuguesa foi a única que não era de militares, mas de professores universitários. De facto, o Salazar detestava militares. Ficou piurso quando a Universidade de Coimbra deu um doutoramento honoris causa ao Franco. Nem sequer lá foi assistir. Mas foi habilidoso. Os ingleses disseram-lhe que não podiam defender a Península contra os alemães e ele convenceu o Franco a não alinhar com o III Reich. O Franco queria entrar na guerra e apoiar o Hitler, mas o Salazar conseguiu demovê-lo.

Está a trabalhar nalgum livro, neste momento?

Como dizia a Agustina, "estou sempre com o tricot". Estou a trabalhar em ficção. Fartei-me da realidade. Agora é o centenário do Jorge de Sena juntamente com o da Sophia… E fui, há tempos, a uma sessão com professoras universitárias e as coisas que lá disseram! O Jorge está a quilómetros da Sophia! O Sena é um génio. A Sophia é uma boa poetisa. Quem deveria estar no Panteão era ele e não ela. A Sophia, coitada, foi transformada “na poetisa” deste regime, porém, as grandes figuras do século XX português foram Fernando Pessoa, na primeira metade, o Agostinho da Silva, o Sena e a Natália Correia. Foram os pensadores mais ousados. Fico triste com isto e decidi escrever ficção e abandonar os livros sobre a realidade, porque as pessoas que investigam só ligam a documentos escritos e colocam em dúvida quem viveu os acontecimentos. Há tempos estava em conversa com um célebre historiador do Estado Novo… E como é que ele estuda a história do regime? Manda os alunos para a Biblioteca Nacional e para a Emeroteca ler jornais. Tive de lhe dizer: "bem se vê que nunca trabalhaste num jornal. Em primeiro lugar, havia a Censura, que não deixava os jornalistas escreverem e o Portugal dessa época nos jornais é distorcido e incompleto. E depois havia muitas aldrabices que fazíamos dentro dos jornais e que não eram para ser levadas a sério. Deveriam era ouvir os velhos, que protagonizaram isso". Quando chegamos a velhos, já nada temos que perder, nem cargos, nem nada e contamos as coisas. Sempre procurei convívio com essa gente que me contava coisas extraordinárias. Perguntam-me onde está o contraditório disso? Não estou a fazer história, não sou ensaísta, sou apenas memorialista ou cronista. As pessoas especializadas em autores e temas, apenas admitem aquilo que elas mesmas descobrem. Aquilo que é relatado por outros, tentam desvalorizar. É o caso da história do Fernando Pessoa com o Agostinho da Silva e do nascimento da Lusofonia, à mesa de ambos no Martinho da Arcada. Conviveram desde 10 de Dezembro de 1934, até 27 de Novembro de 1935. Nesses meses idealizaram o grande bloco ibérico e outras ideias, mas ninguém quer saber.

Perfil
Cronista da história

Nasceu no Caxito, na Fazenda Tentativa, pertencente à Companhia do Açúcar de Angola, onde o pai trabalhava, mas, quando tinha três anos, a família mudou-se para Segões, no Alto Douro. Fez o secundário no Liceu Nacional de Latino Coelho, em Lamego, ingressou depois na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e acabou por se fixar em Lisboa, onde se licenciou em Filologia Românica.

Em 1967, iniciou a sua carreira na agência noticiosa Europa Press, como repórter na Assembleia Nacional e no Conselho de Ministros. Conheceu Salazar e a sua governanta, Maria de Jesus Caetano Freire que, tendo simpatizado com ele, o tornou seu confidente e lhe deu acesso directo ao ditador.

Convidado por José Cardoso Pires, ingressou no Diário de Lisboa e colaborou em quase todos os jornais e revistas nacionais da segunda metade do século XX como a Flama, a Vida Mundial, o Diário de Notícias, A Luta, Jornal de Letras, Público, Visão, entre outros.

Dirigiu os Cadernos de Reportagem e foi co-editor das edições Relógio d'Água. Homem de esquerda, conviveu intimamente com algumas das maiores figuras da cultura e da política do século XX, da Oposição e do Estado Novo.

A temática da sua obra centra-se na preservação da memória do período pré e pós- 25 de Abril, reflectida em escritos como O Viúvo, Máscaras de Salazar ou Os Mal-Amados. A 9 de Junho de 2005 tornou-se comendador da Ordem do Infante D. Henrique e é membro Academia das Ciências de Lisboa.

Em Novembro de 2019, recebeu o Prémio Vida e Obra, do Festival Literário Tabula Rasa, de Fátima.