Opinião

Vida de cão

20 out 2016 00:00

Não, ainda não tinha jantado, nem comera nada depois que começou a trabalhar às 3 da tarde. Era sempre assim, já que nas horas de trabalho não podia comer fosse o que fosse.

Já passava das 11 horas da noite quando ele entrou e se sentou num dos bancos livres. Era sábado e a esta hora havia felizmente lugares na carruagem. Pálido, visivelmente cansado, respondia pausadamente à senhora de meia-idade que se sentara à sua frente. Enganara-se duas estações antes e agora teria de dar uma volta maior. Vinha do aeroporto onde trabalhava, ia para os lados da Amadora, onde morava.

Queria chegar rápido a casa, até porque já eram mais que horas de comer qualquer coisa. Não, ainda não tinha jantado, nem comera nada depois que começou a trabalhar às 3 da tarde. Era sempre assim, já que nas horas de trabalho não podia comer fosse o que fosse.

Não, o chefe não deixava, e a verdade é que não havia tempo. Havia sempre gente a atender. Não, nem uma bolacha como lhe recomendava a senhora que levasse no bolso e comesse, disfarçadamente. Mas não, não dava… porque se o chefe desse por isso…

O rapaz (talvez de 25-35 anos) estava pálido. Agora transpirava menos, já tirara a gravata e desapertara o colarinho da camisa, mas continuava a sentir necessidade de passar pela cara e pelo pescoço, ora a mão, ora o lenço que tirava e colocava no bolso, nervosa e repetidamente. Tirava os óculos e voltava a colocá-los, enquanto a senhora sentada em frente se lamentava de não ter nada de comer para lhe dar, nem sequer uma bolachita.

Mas, como a esperança é a última a morrer, revolvia o interior da sua mala à procura da bolacha que não tinha. E insistia, com ar maternal, que ele deveria levar qualquer coisa para comer, nem que fosse à socapa.

*Psicólogo clínico

Leia mais na edição impressa ou torne-se assinante para aceder à versão digital integral deste artigo