Opinião

Quem tem medo da representatividade?

17 mar 2023 16:28

Ainda que o direito possa ser usado para combater violências, serviu sempre e serve para legitimar horrores e impor limites à imaginação social


Lembro-me, há muito tempo, do exercício de me imaginar num outro tempo e espaço para refletir sobre as violências normalizadas desse lugar. Não me refiro à experiência empática de me ver na pele da oprimida, mas à de me atribuir uma posição de privilégio, protegida da violência.

Para tentar compreender como foram aceites os horrores da história, a pergunta era: se só ouvisse que o mundo era mesmo assim e não podia ser de outra forma, teria sido capaz de perceber que a escravatura não era inevitável? O que leva à outra pergunta: serei capaz de reconhecer as violências normalizadas do meu tempo e a possibilidade de o mudar?  

Colonialismo e escravatura foram legais. A legalidade/ilegalidade é um critério muito falível para medir injustiças. Ainda que o direito possa ser usado para combater violências, serviu sempre e serve para legitimar horrores e impor limites à imaginação social. 

Foi essa complexidade que me atraiu na sociologia do direito e é por isso que trabalho com o conceito de linha abissal do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. A linha abissal é uma metáfora que ilustra a invisibilidade das experiências das zonas coloniais do mundo, as de ontem, como as de hoje. Assegura que ouvimos a história contada pelos donos de escravos e não pelas pessoas escravizadas. E isso não é só uma injustiça do passado, porque a ausência das narrativas dos excluídos continua a subtrair-nos possibilidades de representar o presente e imaginar o futuro. 

Quando se defende mais representação, algumas pessoas continuam a pensar em operações cosméticas. Daí vêm as acusações do costume sobre a romantização dos oprimidos e o essencialismo do discurso. A questão é que isso é desconversa. Representação é ter diferentes narrativas sobre o passado e sobre o presente. É ouvir a história do ponto de vista das periferias, não só para sabermos mais sobre as violências sofridas, mas para conhecermos o legado de resistência que foi sempre invisibilizado, mas nunca desapareceu. 

A série Bridgerton, inspirada em livros de que nada sei, pinta a aristocracia britânica do século XIX como lugar inter-racial. Colorir a aristocracia, apagar a história do colonialismo e da escravatura e manter inalterada a organização da sociedade é acreditar que se o poder tivesse sido partilhado entre colonizadores e colonizados, o rumo teria sido igual. É crer que se os povos colonizados tivessem podido escolher, escolhiam construir o mesmo tipo de economia, de desenvolvimento, de família. 

É a caricatura da fé eurocêntrica, mas que serve para explicar o que a diversidade não é. Nunca bastou colorir. Assim como nunca foi suficiente incluir mulheres que invisibilizam as desigualdades de género no acesso ao poder. Assegurar a representação é contar o passado e o presente a partir das experiências de exclusão.  

Ouve-se gente assustada com a expressão do que chamam woke e é sempre mais fácil caricaturar a crítica do que desafiar a versão do mundo que se aprendeu. Estranho. Eu tenho medo é de acreditar que já ouvi tudo, evitar a complexidade, não ver o inaceitável e pensar que é mesmo assim.