Opinião

Patê e caviar

23 jan 2022 22:20

Ao deus Dará

São vocês que o dizem, as segundas feiras são péssimas. Quando são as minhas, são ainda mais horríveis. A última foi particularmente dolorosa. 

Ainda a mão estava só a aguçar os dedos  para tocar o invólucro onde guardo a consciência, toda deserta para me esfrangalhar a amígdala do ego pela miserável crónica que vendi aqui na semana passada e já outra dor lancinante me apertava o ser. 

Acontece que é à segunda feira que com muito esforço e uma dieta à base de massa com arroz ao almoço e pão com molho ao jantar, recebemos uma colaboradora para colaborar sozinha na limpeza do chiqueiro semanal que eu, dois gatos, uma cadela, duas crianças e uma senhora, cometemos numa casa de renda. Inflacionada, como nós, num bairro tão nobre quanto falido. 

É um luxo. Um luxo como qualquer outro, demasiado caro para a carteira que acontece eu possuir. Infelizmente , embarcamos num crédito pessoal às prestações para ter a casa limpa e arrumada, é o que é. E para aceder ao nível de asseio do chão que se pretende, há todo um custo existencial a pagar. E eu sinto-o. Mas pelo menos não faz doer as costas.

Para quem trabalha em casa, quando a colaboradora dos assuntos relacionados com detergentes se apresenta ao serviço, ocorre um desarranjo no normal decorrer da vida. Pode ser do cheiro a lavanda e aerossóis mas parece-me que a pena de limpar deveria ser cumprida por quem  sujou. Essa constatação, para não sentir muito a culpa, obriga-me a manobras das quais me envergonho um bocadinho.

Primeiro dá-se um jeito à casa para que a casa esteja em condições de levar um jeito profissional. Pior do que ser um porco, é ser um humano que não tem vergonha de ser porco.  Não conseguindo sair antes, é imperativo sair mal ela chegue. Eu, simplesmente, não sei exibir um nível faustoso de trabalhos urgentes num computador que justifiquem não ajudar a minha colaboradora. Está ali a senhora a esfregar lixivias na casa de banho dos miúdos, naquele sub mundo de macacos escondidos e pasta de dentes, no mínimo, encrustada na loiça, e eu sem colaborar?!

Se por algum motivo for obrigado a permanecer  com a colaboradora que contratei na minha própria casa, e visto que, sujeitos que não partilhem ou um contrato ou  ADN, não devem sofrer o choque consequente das ondas ambientais, sou inibido por uma espécie ancestral de proibição moral, de utilizar plenamente a casa de banho. E isso dá-me ansiedade, e a ansiedade dá-me várias coisas das quais não vou falar aqui.

A questão legal, é limpinho, também faz espirrar. Fiscalizar a minha imaculidade social e descobrir uma coima a aplicar, dói bastante nas fossas, inclusivamente, nasais. É sempre de evitar aquele bocadinho de Rendeiro que os portugueses têm. Pagar sem recibo, contratar sem impostos, sem descontos, é participar num esquema de limpeza com a limpeza da casa.  

Na última segunda feira, acompanhado do meu privilégio e da minha mania feita em fanicos, devido a este constrangimento, meti-me no carro e andei por aí apreciar as tendas, sem destino. Logo eu que sou tão contra  a poluição. Como o meu portátil tem problemas na portabilidade e eu estava sem trabalho, não havia nada a fazer. Apetecia-me ir para uma esplanada pedir tónicos mas vocês já viram se me vissem?! Ou se aparece aquela pessoa que aparece sempre no mesmo exacto sitio em que estás mas diz: - Então, e não se trabalha?! 

Bebi um café numa bomba a despachar e escondi-me dentro do carro num parque ao ar livre.  Abri o livro de crónicas do Miguel Esteves Cardoso que ando a ler e veio-me à memória, que ao contrário do que se diz por aí, quem nasce patê, dificilmente se torna caviar.