Opinião

Os retratos de Helga

3 mar 2022 15:45

Nascida na Alemanha, Helga passou por um convento por influência do pai

“Quanto mais tempo passo com um objecto (…) melhor começo a ver aquilo que não conseguia ver. Começo a ver o que está oculto. Começo a ver mais profundamente o que está lá dentro.”
Andrew Wyeth

Andrew N. Wyeth (1917–2009) pintou Helga Testorf secretamente durante quinze anos. Ao todo foram 45 retratos e 200 desenhos, de nus e não só, que seriam guardados secretamente quase até ao fim da sua vida.

Nascida na Alemanha, Helga passou por um convento por influência do pai, optando mais tarde por estudar enfermagem. Em 1957 conhece John Testorf, um americano naturalizado alemão, com quem se casa mudando-se para a Pensilvânia.

Em Chadds Ford, perto da casa onde Wyeth morava, torna-se cuidadora de Karl Kuener, que Wyeth habitualmente retratava.

Foi na casa de Kuener que, em 1970, se deu o encontro de Helga com um dos mais célebres pintores americanos realistas do século XX, também conhecido como o pintor do vento.

Imediatamente intrigado com os traços germânicos dela e com a emanação de uma força de carácter telúrica, Wyeth descobre em Helga a personificação do sonho feminino que alimentara durante a adolescência.

Nascia assim a sua musa secreta e um novo fulgor criativo na sua carreira que teve na série “Helga Pictures” (os quadros de Helga) um marco decisivo.

A alemã de 31 anos seria a última mulher anónima a tornar-se célebre através da pintura, e Andrew Wyeth aprofundar-se-ia enquanto pintor através dos seus retratos.

Uma relação artística singular que se desenrolaria perante o total desconhecimento do marido de Helga e da mulher de Wyeth, que era também sua agente.

Caracterizados por uma produção prolongada no tempo e pela rara intimidade que os atravessa, os retratos de Helga, pintados em sessões de oito horas diárias, transportam um invulgar espectro de subtilezas emocionais.

Nos perfis contra fundos negros em que o rosto alvo de Helga irrompe da paleta de cinzentos sóbrios a que Wyeth recorre, é quase possível intuir-lhe a espessura de um pensamento ou a vulnerabilidade de uma emoção.

Por sua vez, a profundidade psicológica a um tempo subtil e rigorosa que perpassa nos nus, e que chegaram a levantar suspeitas de infidelidade nunca confirmadas, dá a justa medida da rara aproximação que os uniu.

“Ter sido sua musa foi uma espécie de renascimento”, confessará Helga mais tarde num breve documentário sobre a influência que exerceu na obra Wyeth: “Ele foi ele próprio, tal como eu queria ser eu própria e tivemos a oportunidade de partilhar isso um com o outro. A nossa relação era uma relação de troca emocional. Ele tinha fome, e eu estava esfomeada… foi então que ele me deu o que eu queria e obteve de mim aquilo que desejava. Ele esteve sempre a pintar-se através de mim. Eu fui o fruto da sua imaginação como uma folha ao sabor do vento. Estou lá mas não estou lá”.

Em 1985, ainda em vida do pintor, os retratos de Helga foram revelados, desencadeando uma forte onda de sensacionalismo, apesar das recomendações de Wyeth para que apenas fossem mostrados após a sua morte.

A sua mulher, quando questionada acerca do secretismo da relação entre o marido e Helga durante todos aqueles anos, e do que via naquela série de retratos, diria após uma longa pausa: “Vejo amor”.