Opinião
O Nobel da Paz: uma história de incoerências
Pode uma pessoa que defende o uso da força e da pressão externa ser reconhecida com um prémio destinado à promoção da paz?
O Prémio Nobel da Paz nasceu com uma ideia clara - distinguir quem atua pela aproximação entre povos e pela superação dos conflitos armados. Alfred Nobel definiu que o prémio deveria reconhecer quem mais tivesse contribuído para a fraternidade entre povos, preservação da vida humana através do diálogo e da reconciliação.
Com o tempo, a sua visão tem sido difícil de manter. A história do prémio inclui casos em que a escolha do Comité Nobel gerou controvérsia. Em 1973, Henry Kissinger foi distinguido apesar do seu papel em decisões militares e bombardeamentos no Vietname e no Camboja. Em 2009, Barack Obama recebeu o Nobel poucos meses após assumir a presidência dos Estados Unidos, antes mesmo de apresentar resultados em matéria de desarmamento ou mediação internacional. Nos anos seguintes, o seu governo autorizou operações militares e ataques aéreos em países como o Afeganistão, Líbia, Síria, Iraque, Iémen e Somália, o que alimentou críticas sobre a compatibilidade entre essas ações e o espírito do prémio.
A atribuição de 2025 reforça esse debate. O Comité Nobel concedeu o prémio à venezuelana María Corina Machado, reconhecendo o seu papel na defesa de direitos democráticos e na denúncia da repressão política no seu país. Contudo, Corina Machado tem apelado publicamente à intervenção armada e a sanções internacionais contra a Venezuela, pedindo apoio externo para provocar uma mudança de governo. Também se notabilizou com o seu apoio ao genocídio palestiniano.
Esta posição levanta uma questão essencial: pode uma pessoa que defende o uso da força e da pressão externa ser reconhecida com um prémio destinado à promoção da paz? A coerência com o espírito de Nobel exige que os meios utilizados para alcançar objetivos políticos não agravem o sofrimento humano nem comprometam a soberania de povos.
Intervenções militares e sanções prolongadas têm efeitos diretos sobre a população civil: escassez de alimentos e medicamentos, emigração forçada, deterioração de serviços públicos. Ao apoiar essas medidas, ainda que com o argumento da libertação, perde-se o princípio central do humanismo que sustenta o Nobel da Paz de preservação da vida humana e do diálogo. Premiar alguém que incentiva a possibilidade de uma intervenção armada é um sinal de deslocamento do prémio em relação à sua base ética.
A lógica humanista do Nobel da Paz precisa de ser recuperada. O prémio só cumpre o seu propósito quando reconhece quem se opõe ao uso da violência em qualquer das suas formas. Quando se confunde o combate político com a construção da paz, o prémio deixa de representar o ideal universal que o originou e torna-se um reflexo das circunstâncias do momento.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990