Editorial
O grito da memória
Francisco surpreendeu, ao assumir as dores de uma Igreja Católica instalada, hesitante, fechada sobre ela própria
Quando este texto chegar ao seu ecrã, já muito se falou do legado do Papa Francisco, do sentido de humanidade e inquietação que deixou na Igreja e no mundo. Ainda assim, (e permitam-me que vos fale na primeira pessoa pela primeira vez), atrevo-me a acrescentar mais umas linhas ao que já foi dito, escrito e mostrado.
Se pudesse, deixava esta coluna em branco, para surpreender, criar uma ideia de espaço aberto, sugerir a ausência de ruído e a presença de algo mais profundo – a escuta. Como não posso, permitam-me destacar, em poucas palavras, pelo menos estas três características do Homem que partiu da vida terrena no início desta semana.
Francisco surpreendeu, ao assumir as dores de uma Igreja Católica instalada, hesitante, fechada sobre ela própria e sem coragem para assumir os erros do passado. Pediu perdão pelos abusos cometidos por membros do clero, pelo colonialismo cristão e pela forma como a Igreja tratou as minorias e as pessoas marginalizadas.
Pediu para que se abrissem as portas a “todos, todos, todos”, uma expressão que marcou a Jornada Mundial da Juventude em Portugal e teve grande impacto não só nos fiéis, mas também no clero.
Por razões profissionais, acompanhei o pontificado e estive ao vivo com três papas: João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Todos deixaram a sua pegada intelectual. Mas só Francisco me assombrou com a forma como sabiamente soube enaltecer o silêncio.
Usou-o em diferentes momentos e geografias. Um deles foi em Fátima, em Maio de 2017. O recinto do Santuário estava repleto, com centenas de milhares de peregrinos. O Papa ajoelhou-se, na Capelinha das Aparições, em oração. E todos, mas mesmo todos, acompanharam o Pontífice, fazendo mergulhar a Cova da Iria num silêncio arrepiante, durante quase oito minutos.
Neste momento de luto, que vai ser também de mudança no Vaticano, é bom manter vivo este convite ao recolhimento, pois o silêncio também pode falar, denunciar, acolher, transformar e ser um poderoso “grito da memória”.