Opinião

Música | Um bom homem

25 abr 2020 20:00

É sabido que um bom homem é difícil de encontrar.

Infelizmente, e sem espantos, quando sairmos do confinamento esta verdade será confirmada pelos números da violência doméstica.

A posição social do homem é central em Fetch the Bolt Cutters, o disco novo de Fiona Apple.

A violência masculina está espelhada em várias canções, como em For Her, quando a uma pausa se segue a voz de Apple: “Ora, bom dia, bom dia, / Violaste-me na mesma cama onde nasceu a tua filha.”

Mas esta violência também é descrita nos seus aspectos mais subtis: “O Tony disse que me descrevia como assanhada, divertida e calorosa / O Sebastian disse que eu era um bom homem numa tempestade.”

Ser pessoa de confiança em momentos difíceis é um elogio, mas a palavra “homem” é já um insulto que se soma à condescendência de elogiar uma mulher por se portar como um homem.

Uma certa ousadia neste disco consiste em aceitar que mulheres boas também escasseiam, a começar na autora.

O título, por exemplo, tem uma leitura ambígua. Retirada a uma série policial, a expressão é usada por uma detective quando liberta uma mulher enclausurada e sujeita a tortura (“Vão buscar os alicates”). Mas na canção com o mesmo nome, quem faz o pedido é a própria reclusa: “Vão buscar os alicates, estou farta de estar aqui dentro,” canta Apple, dando uma ordem e anunciando que a clausura termina por sua vontade. A sua fragilidade pode ser afastada com uma ordem assertiva, logo este imperativo acarreta culpa. 

Não se ensaia a teoria de que podemos ter domínio sobre o que nos acontece, muito menos em relação à violência física e psicológica que outros nos infligem. Sabendo que o comportamento de género é já em si opressivo, Apple supõe que o problema seja da própria espécie: “Bem, compreendo que és um humano / E que tens de mentir, és um homem / E tens de ter o que queres / Como queres, mas eu também.”

O ser humano já tem em si a necessidade de mentir, pelo que lhe está vedada a possibilidade de ser moralmente bom. Propõe-se, por isso, na última canção (que foi a primeira a ser escrita), uma mutação intelectual: “Movo-me apenas para me mover.”

Apple não é um bom homem; e hoje estará mais longe de querer ser uma boa mulher.

A descoberta de que não há humanos bons permite perceber que não tem de cumprir papéis e estabelecer o tipo de relações que nos distinguem como humanos para se sentir completa; o reconhecimento desta liberdade permite exprimir a sua vontade física de sobrevivência como o desejo de se mover sem mais aspirações que não o próprio movimento.

Isso explica que se caracterize desta forma: “Alastro como os morangueiros / Trepo como as ervilheiras ou os feijoeiros.”

Sem constrangimentos impostos por terceiros, suplanta as regras sociais e artísticas que a limitam; este disco não glorifica a amoralidade, celebra (genialmente) a liberdade absoluta de uma mulher.