Opinião

Música | O apagão

2 mai 2025 11:41

Depois desta segunda-feira às escuras, nada está garantido. O melhor é termos sempre à mão um rádio de pilhas e os nossos vinis

Há umas boas crónicas atrás escrevi um texto sobre a minha rendição total ao digital. Na altura, dizia que tinha despendido uma pipa de massa a consertar os aparelhos de alta-fidelidade e a gota de água foi a avaria do leitor de compact disc. Isto tudo a juntar ao desaparecimento da minha coleção de discos em vinil. Talvez Freud explicasse melhor, mas pareceu-me que houve ali uma grande dificuldade minha em lidar com a perda.

Acontece que tempos depois os meus discos de vinil apareceram: estavam encaixotados algures no sótão, tão bem arrumados, que ninguém dava por eles.

Encontrar aquelas caixas cheias de discos foi qualquer coisa. Afinal estava ali uma boa parte da história da minha vida, documentada em capas fabulosas e prensada numas boas gramas de vinil. Voltei a abrir os cordões à bolsa e, desta vez, optei por comprar tudo novo: gira-discos, colunas, amplificador moderno com entrada analógica, e tudo o que precisamos para ouvir música com qualidade. Nada de excentricidades, que este mundo do hi-fi é muito perigoso.

Não retiro uma virgula ao que disse sobre o digital, atenção. Mas voltar a ouvir os meus vinis, e outros que, entretanto, comprei, é muito bom. E a grande diferença para tudo o resto é que paramos para ouvir música. Todo o processo de abrir um vinil, colocá-lo a rodar e ficar com ele na mão enquanto o escutamos faixa a faixa, é muito relaxante. Para as tarefas do dia a dia, ouve-se a música nova que vai saindo no streaming, para nos escondermos um pouco do mundo agitado, ouvimos a recente edição comemorativa The K&D Sessions de Kruder Dorfmeister ou o velhinho Daydream Nation dos Sonic Youth.

Tudo voltou a fazer mais sentido - o prazer de comprar um vinil naquela viagem ao Porto em que passámos pela Louie Louie ou naquela loja que descobrimos em Barcelona ou noutra cidade que visitámos ou no concerto da nossa banda favorita. Um vinil tem toda uma história à volta e não se compra por atacado.

Esta semana tivemos um apagão e ficámos sem eletricidade. Muitos de nós recorremos ao rádio de pilhas para ouvir as notícias. E lembrei-me logo do sururu que o tal texto que escrevi provocou na altura, com muitos amigos a contestarem a minha rendição ao digital. Um deles, peço desculpa, mas não me lembro quem, disse algo do género: “e se houver um apagão (digital)?”

Aquela observação faz todo o sentido e ficou-me. Depois desta segunda-feira às escuras, nada está garantido. O melhor é termos sempre à mão um rádio de pilhas e os nossos vinis. Nunca se sabe.