Opinião

Música | Divine Comedy

25 out 2020 20:00

Aconteça o que acontecer, aposto já aqui com quem quiser, que alguns dos retratos musicais mais elegantes destas últimas três décadas do universo pop anglo-saxónico têm a voz e música Neil Hannon

O irlandês Edward Neil Anthony Hannon é normalmente reconhecido pelo nome abreviado de Neil Hannon mas é sobretudo pela designação do seu projecto The Divine Comedy que tem chegado aos nossos ouvidos e é extremamente difícil encontrar alguém que tenha, nas últimas três décadas, tratado tão bem a língua de Shakespeare enquanto construiu um cancioneiro de música pop adornada pela influência épica da música clássica.

Ao longo dos anos já tive oportunidade de ver Neil Hannon interpretar os seus temas das mais variadas formas, apenas com um piano, com uma banda em formato rock ou com uma formação orquestral e a sua classe e versatilidade são arrebatadoras. 

Resolveu, em boa hora, arrumar toda a divina comédia numa caixa de CD com a obra integral e cheia de extras e reeditar a discografia em vinil.

E, como se não bastasse, quase todos esses extras estão também disponíveis nos habituais serviços de streaming.

Se Fanfarre for The Comic Muse, em 1990, mostrava uma tímida formação influenciada por Smiths e REM e cedo o envergonhou, acabando por ser apagado da sua discografia, a partir de 1993 e do disco Liberation, Hannon arranca logo um punhado de canções como Death Of A Supernaturalist, The Pop Singer’s Fear of the Pollen Count ou Timewatching, que mostravam ao que vinha e no ano seguinte ergue aquela que é, provavelmente a sua primeira obra-prima Promenade, alinhando temas como Going Downhill Fast, The Booklovers, The Summerhouse, A Drinking Song ou Tonight We Fly.  

No entanto o sucesso comercial que se jogava nas guerras da brit pop e nas novas aventuras do rock parecia não querer nada com a epopeia que Neil Hannon levava a cabo e só a partir de Casanova, em 1996, é que descola de vez, muito por culpa dos hinos Something For The Weekend, Becoming More Like Alfie, Songs of Love ou The Frog Princess.

Se A Short Album About Love o consagra, embalado pelo sucesso de Everybody Knows (Except You), em 1998, trepa os tops com o deslumbrante Fin de Siécle que encontra em temas como Generation Sex, National Express ou Certainty Of A Chance, exemplos de um compositor tão letrado quanto elegante e irónico que tinha finalmente encontrado o seu espaço e só precisava de ir mantendo o estatuto com aparições, colaborações e bons singles, como aconteceu com Bad Embassador, Come Home Billy Bird, Our Mutual Friend ou A Lady Of A Certain Age e eis que em 2010 chega outra obra prima: Bang Goes The Nighthood.

Quando agora, passados dez anos, voltamos a pegar neste disco parece que esta década se cristalizou nas suas letras, entre as desventuras dos banqueiros, os saudosismos de meia idade, os likes e a arte esquecida de conversar.

Os mais recentes Foreverland e Office Politics fecham a contagem e a caixa Venus, Cupid, Folly and Time condensa estas três décadas em 12 discos duplos com dezenas de inéditos, lados B, demos e versões alternativas, assim como textos do próprio Neil Hannon sobre cada um dos discos e da respectiva fase.

Aconteça o que acontecer, aposto já aqui com quem quiser, que alguns dos retratos musicais mais elegantes destas últimas três décadas do universo pop anglo-saxónico têm a voz e música Neil Hannon nos seus Divine Comedy. É ouvir, e verão.