Opinião

Marketeer a dias | Quentes e boas, se faz favor!

11 dez 2022 15:23

Maria de Jesus transcende as marcas pessoais, porque é uma marca de coração. Ser capaz de entregar castanhas quentes e boas, como quem se entrega às relações, para durar

Maria de Jesus é um ícone de Leiria. Quem não conhece a figura da senhora que, nesta época, se encontra frente ao edifício Garage, junto à Rodoviária, com o seu carrinho verde a assar castanhas?

A nuvem de fumo tinge a atmosfera, envolve mesmo quem tenta escapar-lhe e tolda-lhes os sentidos. É o primeiro sinal de que estamos a salvo: (re)encontrámos, finalmente, conforto nos dias que arrefecem nesta altura do ano. De repente, torna-se mais fácil aceitar que o verão já lá vai e até esquecer o que nos levou, naquele dia, aquela parte da cidade. Quando damos por nós, já estamos na fila. E lá permanecemos - naquele misto de calma e frenesim comum a uma criança que aguarda pela meia noite para abrir as prendas na noite de natal - até que chegue a nossa vez de receber o cartuxo daquelas mãos singulares, forjadas a fumo e fogo.

É um momento verdadeiramente especial: o descascar da primeira castanha, que nos tinge os dedos mas não faz mal; o saborear “sem pressa” que adotamos para tudo o que se apresenta quente e magnífico, desde o seu interior; o mastigar de um conjunto de sabores redondos, que se vão revelando.

Para qualquer leiriense, este ritual de aromas é peregrinação “obrigatória”, pelo menos uma vez ao ano.

A mestria da Maria de Jesus vai muito além de assar castanhas. As suas pernas já acusam a idade, mas sobretudo, a exigência do ofício. O invólucro-embalagem que envolve o fruto fumado e tostado ao ponto, já não é aquele tosco, a lembrar os das antigas “tabernas” onde noutros tempos as pessoas se iam aviar de açúcar ou massa “cotovelinho”, a granel, porque alguém descobriu o alcance daqueles pacotinhos e imprimiu-lhe uma marca. Mas nada disto importa. A marca “Maria de Jesus” é pessoal e esperançosamente transmissível, já que se torna cada vez mais comum contar com a ajuda do filho, aprendiz das mais ténues nuances da arte de servir castanhas. Quentes e invariavelmente boas.

Contava-me no outro dia uma amiga, que está de “esperanças”, que foi até lá com as filhas do seu companheiro. Havia compras a fazer, nas lojas de pronto a vestir nas proximidades. Mas também elas ficaram inebriadas pela experiência sensorial que emana daquele carrinho e da figura humana que o conduz. E apesar da fila extensa, e do risco das castanhas daquele fim de dia esgotarem daí a nada, elas fizeram paragem por lá e a Maria de Jesus confirmou ser pessoa atenta. Não só às castanhas no assador, como à sua clientela. Prova disso é que se apressou a retorquir: “vá lá onde tem de ir, com as meninas, que eu guardo-lhe um cartuxo delas quentinhas”. E elas lá foram. E regressaram, como combinado, ao encontro do prometido cartuxo. Nem precisaram de aguardar novamente na fila, que a Maria de Jesus logo lhes pôs a vista em cima e chamou-as para lhes entregar o pacotinho, com direito a uma castanha-extra para o “Menino Jesus a caminho”.

Confesso: se tivesse um Livro de Receitas de Marketing Relacional, adicionaria esta marcada como “a repetir”. Que a Maria de Jesus é mestrina em castanhas assadas já toda a gente sabe. Que entrega um
produto exemplar, já todos (com)provámos. O que talvez só alguns parem para contemplar é: como é que ela consegue criar tamanhos laços com a cidade, com aquele largo, com as pessoas - e de um para um! - há mais de 50 anos, e sem nunca as defraudar?

“Maria de Jesus” transcende as marcas pessoais, porque é uma marca de coração. É o que de mais puro o Marketing Relacional tem de ser também: com ou sem licenciatura, com ou sem mestrado, ser capaz de entregar castanhas quentes e boas, como quem se entrega às relações, para durar.