Opinião

Literatura | Noel Coward (1930) VIDAS ÍNTIMAS, OU o drama das relações amorosas…

29 fev 2020 20:00

É a primeira vez que me atrevo a falar de um autor inglês (1899-1973), Sir Noel Pierce Coward, encenador, compositor, cantor, autor de mais de 50 peças de teatro, quadros de revista, centenas de canções, argumentos para filmes, contos, um romance, uma autobiografia, nascido num subúrbio de Londres.

Estreou-se como ator profissional aos 11 anos e manteve carreira por 6 décadas, tendo sido nos anos 20 e 30 um dos autores mais representados do mundo anglo-saxónico.

O motivo do meu atrevimento foi ter sido uma das felizes espectadoras de Vidas Íntimas, com encenação de Jorge Silva Melo, que esteve no teatro José Lúcio da Silva no passado dia 6 de fevereiro. A tradução da peça, de pequeno elenco, é de Miguel Esteves Cardoso, editada pelos Artistas Unidos, na belíssima coleção “Livrinhos de Teatro”, pela editora Cotovia (abril de 2013). Informações mais detalhadas sobre os dados biobibliográficos do autor podem ser lidas nas duas páginas iniciais do n.º 73 da coleção de clássicos.

Tento não repetir o que podem aí encontrar, até porque me centro no interesse despertado por um pequeno texto dramático, com 4 personagens principais e 1 figurante, 3 atos, num total de cerca de 85 páginas, formato mínimo tipo A3, e um grafismo belo e puro, como é raro encontrar, juntos num volume de bolso acessível pela quantia de 10 euros.

Leio narrativas e procuro as 5 categorias: tempo; espaço; personagens; intrigas/ação; moral/lição/valores veiculados.

No terraço de um hotel em França, na década de 20/30 vão encontrar-se (e reconhecer-se…), nas varandas dos respetivos quartos, 2 casais em que um dos membros já foi casado com o outro: Amanda&Victor [A&V]; Sybil&Elyot [S&E] (Amanda&Elyot [A&E] tinham formado um casal em tempos anteriores).

A empregada Louise dá cor ao adereço e ajuda o leitor/espectador a compreender os degraus abissais da estrutura de classes à época: os favorecidos da vida e os ‘escravos’ deles; a futilidade do bem estar de uma civilização ocidental agoniada com a abundância e a necessidade de dissipação em objetos/frequência de locais exteriores de riqueza; a angústia e falta de segurança e amor próprio que domina algumas personagens e atua em cenas trágico-cómicas de ciúmes e sofrimento psicológico de menorização do outro e narcísico olhar para o espelho de um umbigo lustroso e com as medidas regulamentares da moda do momento; a ausência de uma verdade interior, capaz de estilhaçar todo o fingimento social e as fragilidades de uma mundanidade fabricada artificialmente.

A reviravolta dá-se no 2.º ato: A&E assumem que continuam apaixonados e resolvem fugir para o apartamento de Paris, onde recebem a visita de Sybil&Victor [S&V] (que, entretanto, tinham ficado sozinhos no hotel de praia e tinham formado um novo casal).

Aí o ambiente é de comédia e o espectador poderá julgar que nova reviravolta se vai dar.

Há brigas e amuos e acabam todos embebedados e a dormir: ou no quarto de visitas ou nos sofás da sala.

Com ou sem bem-dita Louise a limpar os ‘dejetos’ da vida ‘chique e dissoluta’.

Porém o par principal é A&E – inteligente e subversivo, anarquista e perverso – e, no 3.º acto, fogem de novo, deixando o par S&V em discussão morna e enfastiada com a mesmice das normalidades de um quotidiano castrante.

Não é a mesma coisa ler apenas o texto sem ter visto as representações excelentes de Rita Durão (Amanda), Rúben Gomes (Elyot), Tiago Morais (Victor), Vânia Rodrigues (Sybil) e Isabel Munoz Cardoso (Louise).

Drama só ganha vida em palco. No entanto, a tragédia das relações amorosas (e um certo estado do mundo ocidental…) na década de 20/30 é mais do que uma janela, passados 100 anos: continuamos confusos com os relacionamentos amorosos.

E se um par (neste caso ainda só feminino/masculino…), independentemente do género, é o núcleo da família: atuais são os clássicos que viram a crise com tanta antecedência!

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990