Opinião

Letras | Caronte à Espera. Cláudia Andrade no prenúncio da celebridade e crueldade da ironia

12 out 2023 10:07

A força das personagens e os mundos imaginários são duas qualidades maiores desta escrita pujante

Sobre a autora Cláudia Andrade, pode ler-se no final do romance Caronte à Espera: “Nasceu em Lisboa. Uma das vozes emergentes no panorama literário português, é autora de vários livros de contos, entre os quais Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro de 2017, Canção de Ninar (Escritório Editora, 2015), vencedor do concurso literário incluído no Motel X, em 2015, Quartos de Final e Outras Histórias, vencedor do Prémio SPA Autores – Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2020, e de um romance, Caronte à Espera, primeiro romance publicado em Portugal.”

Porém, sendo professora de literatura portuguesa, o que me chamou a atenção para este livro foi uma recensão crítica na revista do Expresso, de Luísa Mellid-Franco, do ano horribilis de 2020, com alguns dados contextuais que me intrigaram. Este mesmo livro tinha sido publicado no Brasil há oito anos pela APED, e a sua autora, uma tal Vitória F., fora apresentada como ‘residente em Portugal’. Assim, o livro tinha muitas notas-de-rodapé que explicavam as diferenças linguísticas e semânticas entre expressões congéneres. Ora, tal nomenclatura desapareceu por completo da edição da Elsinore, bem como o pseudónimo e da epígrafe de O fazedor de J. L. Borges que aparecia na edição brasileira. Cláudia Andrade percorre agora o seu caminho literário com uma determinação e crueza dura, notável e incomum.

Caronte, o barqueiro que espera as almas já despidas de sonhos, desejos, memórias, vozes, preceitos, angústias e remorsos, é o fulcro da narrativa. Algo como um fiel de balança entre a visceral crueza com que o narrador exerce a ironia (em terrenos ínvios que o pudor escusa a entrada a mulheres… seja por compadecimento, seja por preconceito) e o agreste latejo (mas suave…) com que metamorfoseia nomes paralelos e situações em espelho em vez de confundir textos.

Por vezes mordaz em demasia, o fio da narrativa é conduzido por um homem que guarda consigo uma carta de despedida e uma enigmática fotografia que vai protelando o desfecho anunciado. Arrogante e ridículo, o suicídio é uma guerra perdida contra o desencanto.

Subtil, determinada, Cláudia Andrade acrescenta borgesianamente a realidade ao interferir com ela: assume-se como encenadora, dando as entradas e repondo em palco outros ‘fazedores’ que ilustram a origem do texto na vontade de resistir à fugacidade do tempo. A força das personagens e os mundos imaginários são duas qualidades maiores desta escrita pujante.

O conforto do leitor não parece preocupar minimamente a autora; e, no entanto, quem a lê permanece disposto a surpreender-se/incomodar-se a cada novo livro.