Opinião

Ler memórias

11 fev 2016 00:00

As pessoas marcantes, aquelas que mais nos desafiam e acrescentam, que nos fazem ver e pensar e sentir diferente, que nos revelam ângulos inesperados e perspectivas novas, não são aqueles heróis grandiosos

Para que servem estas crónicas? É verdade que tenho gosto em escrevê-las, até porque geralmente é difícil fazê-lo, e o que é desafiante, o que implica entrega e luta e esforço, é mais saboreado. Mas para que servem realmente? Talvez permitam fixar momentos e pensamentos, memórias, sensações, formando um pequeno arquivo privado que depois vou partilhando; ou talvez sejam uma vaidade, uma distracção, uma irrelevância. Contudo, exista ou não utilidade nos textos, talvez resida algum valor no facto de fixarem no papel fragmentos de vida que permanecerão para sempre registados no corpo e na mente; como se a escrita pudesse ser uma espécie de materialização concreta dos fragmentos de vida que relatam, um testemunho palpável a que se poderá regressar sempre (como regressamos às fotografias de infância, por exemplo).

E agora que chego à quadragésima crónica, quase quatro anos depois da primeira, apetece-me parar e fixar-me uma vez mais nalguns desses fragmentos de vida, reler algumas dessas memórias. Por exemplo, lembro-me de ter escrito (e, antes, de ter vivido) isto: «A minha filha está ali ao lado, no seu quarto. Por vezes, ouço-a teclar ou rir ou murmurar partes de músicas que ouve com auscultadores. Quando ela era criança, ficava a escutar a sua respiração enquanto dormia, pensando que o murmúrio da respiração talvez seja a música mais bela e tocante que possamos escutar.»

Ou isto: «Vou escrevendo no caderno, arrumando e fixando momentos e sensações. Desejando que os professores destas crianças lhes consigam transmitir que a escrita é, afinal, uma forma única de preservar memórias; que lhes mostrem que todos podemos ser escritores, nem que seja apenas das nossas próprias memórias.» Ou isto: «Abdicamos de ambicionar e perseguir uma felicidade esplendorosa, inesperada e possivelmente aniquiladora, impossível de manter indefinidamente, para nos acomodarmos a uma amostra de felicidade mínima mas estável, a uma espécie de serviços mínimos de felicidade, sem risco nem chama nem combustão.»

Ou isto: «As pessoas marcantes, aquelas que mais nos desafiam e acrescentam, que nos fazem ver e pensar e sentir diferente, que nos revelam ângulos inesperados e perspectivas novas, não são aqueles heróis grandiosos ou personalidades exemplares a que atribuímos poderes quase mágicos mas, tão só, pessoas comuns que muitas vezes estão mesmo à nossa beira ou com quem nos cruzamos fortuitamente; pessoas que por serem como são e o que são, livres e fiéis a si próprias, independentes e genuínas, nos inspiram de forma subtil mas marcante, contribuindo para que as nossas vidas tenham mais sentido e sejam mais sentidas.»

Ou isto: «Olho em redor, tentando distrair-me dos pensamentos; deparo-me com a estátua de um rei qualquer que está à minha frente, o que me faz sorrir; e é bom sorrir, os sorrisos são uma espécie de vitória da emoção sobre a racionalidade. Penso em como precisamos de estátuas na nossa vida, que representem memórias específicas e concretas, só nossas; pergunto-me: será que enquanto vivemos estamos a construir a nossa própria estátua?»