Opinião

Crónica da sala de espera

1 set 2022 21:45

Um fim que se recusa

Há imagens que alteram a morfologia da retina.

O canteiro murcho na curva da entrada do hospital.

O bar anónimo que serve pastelaria obesa.

O linóleo gasto da sala de espera.

A senha com o número alto que promete demora.

A gorjeta muda e o pudor.

O saco de plástico desbotado que carrega a história do nódulo. A espera que não cede à gorjeta.

O protocolo cifrado assinalado na etiqueta do pulso.

A prioridade do estado de saúde definida por cores.

O sinal de chamada. O abandono.

A saúde que aguarda. A bata desinfectada e curta.

O cabelo simulado desviado da linha simétrica da testa. A veia magoada que sobra da manga que não chega para esconder o braço marcado pelos soros.

O porte aristocrático com que passa no corredor de bata curta e cabelo oblíquo.

O momento em que regressa para entregar a medalha da fé a quem espera. A superstição.

O olhar com que silencia quem a aguarda. O rosto de quem espera que se enterra cego no livro.

A demora. O porte delicado com que regressa vestida e endireita discretamente o cabelo.

A pergunta que esbarra na pressa do médico que passa no corredor e que não tem respostas.

A etiqueta que permanece no pulso. O táxi de estofos de napa. O cheiro a desodorizante barato do automóvel. O discurso cúmplice do taxista veterano da saída do hospital que quer distrair.

A música tola.

O embaraço do saco desbotado com o histórico do nódulo, que pesa.

A etiqueta do pulso que custa a rebentar.

O taxista que não sabe o caminho.

A saúde míope. A doença opaca que confunde o futuro.

O remédio cruel cujos efeitos perduram. O conforto que não consola.

O amor que não chega. O riso que não oculta.

Um ateu a relembrar a medalha da fé que ainda não regressou ao peito e na qual depositam ambos uma esperança avulsa.

Uma ideia de prece que acelere o sono químico da noite e que inicie uma qualquer espécie de esquecimento.

Um fim que se recusa.