Opinião

COVIDA

10 abr 2020 12:40

"Ninguém andava pela rua. Ninguém. Que pancadas eram então aquelas, que, como um insulto descabido, acometiam aquela porta há muito encerrada?"

Do exterior daquela porta há muito encerrada ecoaram três pancadas.

Estava alguém do lado de fora.

Desde que fora decretada a quarentena, ninguém andava pela rua.

Nem os fedelhos da vizinhança com a sua habitual algazarra, nem as beatas incessantemente quadrilhando à janela, nem os velhos da praça ralhando à toa, por conta de uma vaza perdida. Ninguém andava pela rua, nem vizinhos ou conhecidos, nem publicitários oportunistas ou missionários inconvenientes. Ninguém.

Da rua só perigo provinha, conforme alertava o telejornal. Gente que nos falava, que nos abraçava e nos beijava, atirando-nos gentilmente os seus perdigotos peçonhentos. Bichos pequeninos, invisíveis, emboscados em todas as superfícies. O ataque iminente, aguardando um descuido, na farmácia, no supermercado, na rua. Ninguém andava pela rua.

Ricardo Graça

 

Ninguém. Que pancadas eram então aquelas, que, como um insulto descabido, acometiam aquela porta há muito encerrada?

Seguramente, alguém distraído procurando informações. Alguém desorientado, pedindo para usar o telefone. Os miúdos da vizinha à procura de alguma bola perdida, ou aquele tipo da frente que está sempre a perder o gato. Talvez a velhota de cima, na perpétua aflição que lhe inflige o isolamento.

Talvez algum acidente. Um homem de rosto ensanguentado, que em desespero veio em busca de auxílio, enquanto a família, ainda tremendo, aguardava apaticamente na berma da estrada, junto do carro capotado.

Talvez uma desgraça. Uma criança perdida, ranhosa de tanto chorar, separada dos pais numa cidade estranha, numa cidade estrangeira, na mais profunda agonia, em busca de orientação para regressar a casa.

Talvez um crime. Uma mulher sovada à procura de refúgio, enquanto a guarda não aparece. Uma mulher de lábio rasgado e de olho negro, fugindo de um marido agressor, que bêbado e desocupado lhe assentara os punhos na cara.

Do exterior daquela porta há muito encerrada ecoaram outras três pancadas.

Dentro soou uma ópera italiana. Primeiro baixinho, logo depois, em níveis ensurdecedores.

Do lado de dentro… não havia ninguém.