Opinião

Cinema | Quarentena

13 mar 2020 20:00

Lembro-me exatamente de quando tudo começou.

Aliás, desde que implantei o último modelo do Vasculhador de Memórias da Google (durante um mês posso usufruir da versão premium, sem custos adicionais) é extremamente fácil recordar-me de uma série de coisas que julgava esquecidas; e ao mesmo tempo compreender como foi tão fácil erradicar a Alzheimer… pelo menos na parte do mundo capaz de pagar por isso.

Mas dizia que me recordo exatamente de quando tudo começou. Foi em fevereiro de 2020. 

Até então, as projeções de cinema do Teatro Miguel Franco eram frequentadas, em média, por pouco mais que uma vintena de pessoas, salvo raras exceções. 

Normalmente estas exceções tinham que ver com a gratuitidade das sessões, porque ao contrário do que sucede agora, onde as pessoas consideram normal pagar dez tokens por um bilhete de cinema, e revelam uma compreensão profunda dos custos inerentes a uma exibição cinematográfica, houve uma altura em que, a menos que esses dez tokens incluíssem uma embalagem de milho expandido e um recipiente cheio de gelo com refrigerante colorido, o público insistia que os ingressos eram muito caros. 

Como convencê-lo do contrário, face à enorme oferta de eventos gratuitos ao ar livre, onde as pessoas podiam socializar à vontade, alheando-se até dos próprios espetáculos?

Mas tudo se alterou com a exibição do filme Parasitas, de Bong Joon Ho, no Teatro Miguel Franco. Inexplicavelmente (ainda hoje é motivo de extensas dissertações, análises e teses) a sala encheu-se de público para ver um filme sul-coreano. Algo inédito!
 
Curiosamente, foi precisamente nessa altura que se disseminou a primeira vaga epidémica do vírus asiático. 

A ciência continua sem conseguir explicar como todas as pessoas que estavam naquela sala ficaram imediatamente infetadas. 

Daí ao contágio global foi...um espirro. Hoje em dia, já ninguém acha estranho que, durante os meses de inverno, três dos quatro dias de trabalho semanal sejam feitos a partir de casa. 

Afirmava-se que os robots iriam roubar postos de trabalho, mas o que realmente aconteceu foi que ganhámos todos qualidade de vida (pelo menos a classe média com formação, que é quem realmente conta para as estatísticas). 

Durante uns tempos, quando ainda chamavam fake news ao noticiário das 16 horas, falou-se que o trabalho não qualificado estava a ser realizado por migrantes, num regime próximo da escravatura, mas obviamente não se pode acreditar em tudo o que nos dizem. 

Aliás, Portugal não é um país racista nem a Europa um continente xenófobo e toda a gente concorda que é preciso colocar para trás das costas o passado colonialista do velho continente.

Porque também há gente capaz de entender os valores do capitalismo em África e na América Latina, não é? 

De que outra forma conseguiríamos lidar com estas ameaças globais?

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990