Opinião
Cinema | O eco de 8 Mile, vinte e três anos depois
O que o filme tem de extraordinário é a sua autenticidade: a forma como traduz o ambiente industrial, a dureza das ruas e a precariedade de quem tenta sobreviver entre turnos fabris e batalhas de improviso
Há filmes que ficam connosco por razões que ultrapassam o cinema… e o 8 Mile é um deles. Estreou a 8 de novembro de 2002 e recordo-o porque fez anos na semana passada, transportando-me àquele momento em que o vi, pela primeira vez, num computador partilhado com um grupo de amigos, nos tempos da faculdade.
Éramos jovens, cheios de certezas, convencidos de que o mundo nos esperava de braços abertos. Achávamos que sabíamos tudo e que nada nos poderia quebrar. Estávamos tão enganados… No entanto, o fascínio que senti por este filme não foi, sem dúvida, um erro. Nem o filme, nem o respeito que ainda hoje sinto pelo Eminem, cujas músicas tocam, frequentemente, nas minhas playlists.
Realizado por Curtis Hanson e escrito por Scott Silver, 8 Mile é um retrato cru e honesto da luta pela própria voz num mundo que não facilita. Inspirado livremente na vida de Eminem, o filme acompanha Jimmy “B-Rabbit” Smith Jr., um jovem branco de Detroit que sonha vingar no mundo do rap – um território dominado por artistas negros – e que enfrenta a pobreza, a humilhação e a desconfiança, tanto dos outros, como de si mesmo.
O que o filme tem de extraordinário é a sua autenticidade: a forma como traduz o ambiente industrial, a dureza das ruas e a precariedade de quem tenta sobreviver entre turnos fabris e batalhas de improviso. Curtis Hanson filma Detroit com um realismo quase documental. A fotografia fria e metálica, as fábricas abandonadas, os subúrbios e os clubes de rap iluminados por luzes sujas, compõem um cenário de desespero, mas, também, de energia criativa. O filme não é apenas sobre música: é sobre resiliência. Sobre o poder de transformar a frustração em arte, e o silêncio em voz.
Eminem, no papel principal, é de uma verdade desarmante. Não é um actor, e talvez por isso, funcione tão bem: carrega no olhar uma mistura de vulnerabilidade e raiva que nenhum intérprete profissional, provavelmente, conseguiria reproduzir.
Já “Lose Yourself”, a canção que valeu o Óscar de Melhor Música Original, condensa tudo: o medo, a urgência, o instante em que a oportunidade surge e pode mudar tudo.
Vinte e três anos depois, o filme mantém a força. Talvez porque, mesmo quando já sabemos que o mundo é mais duro do que imaginávamos, continuamos a precisar de acreditar que ainda há uma hipótese, um minuto, uma rima, uma canção, para nos reinventarmos.