Opinião

Cinema | Memórias do elefante na loja de porcelana

19 nov 2020 15:58

Três parágrafos de cinema sem máscara

Uma semana inteira à espera do domingo de manhã... Porque este domingo de manhã é dia de cinema. Nem todos os domingos de manhã o são, e há muito tempo que nenhum o era. Mas este, é! Olhando para a rua através da janela da sala, com o nariz colado ao vidro embaciado pela respiração, um miúdo de dez anos tenta entender como é possível aquela placidez e ausência de bulício, lá fora, quando dentro dele se agitam gigantescas vagas de impaciente inquietação. Vamos?!, chega-lhe a voz da mãe vinda da cozinha. O sorriso à largura da cara parece crescer ainda mais enquanto veste o casaco de poliester barato. Haverá algo com mais pinta que aquele casaco com um dragão multicolorido nas costas? Nada! Nada apaga a sensação de ser “fixe”, ao sair de casa com ele vestido, para ir ao cinema ao domingo de manhã. Mesmo que lascas da impressão de má qualidade se vão soltando do casaco, rua abaixo, e deixam o dragão salpicado de manchas esbranquiçadas. No escuro da sala do cineteatro, são aos pares os vultos de pessoas grandes e pequeninas, sentados nas luxuosas poltronas. O filme só começa quando se ouve o restolhar dos sacos de plástico que as mães trouxeram de casa e agora abrem sobre os colos, enchendo o ar com o cheiro de pipocas caseiras.

Uma vez por ano é assim. Durante uma semana inteirinha, há cinema em barda entre o meio-dia e a meia-noite. E com bilhetes a um preço simpático, que é algo no topo das preocupações de um estudante universitário. Não faço ideia de quem pensou no programa, mas não me importa realmente. Aliás, até me sentar na sala e ver o filme, é-me impossível recordar o nome dos realizadores. Kusturica, Kassovitz, Haneke, Hartley, Almodóvar. Que diabo… às vezes, é-me difícil lembrar do nome deles mesmo depois de ver o filme e achar que foi a coisa mais genial que alguém fez. Provavelmente devia devia fumar menos daquela coisa que faz rir. Mas eu gosto de me rir. E é o que faço enquanto enfio duas latas de cerveja e uma sandes na mochila e me preparo para atravessar a cidade a pé, para ir ao cinema.

Ele estava excitado. Ela também. Não.. não era esse tipo de excitação. Quer dizer, também era esse tipo de excitação, mas não era isso que eu queria dizer. O que importa é que tinham combinado ir ao cinema. A primeira vez que combinavam algo apenas os dois, sem amigos por perto. O plano era ir à última sessão num multiplex da cidade vizinha. Como se não o pudessem fazer na cidade deles e como se incluir uma viagem de carro de permeio servisse para alguma coisa mais do que aumentar a ansiedade e fazer crescer a excitação. Sim, agora estou a referir-me a esse tipo de excitação. Nenhum deles pensara verdadeiramente em que filme iriam ver, e a realidade é que também não se iriam recordar depois. Mas ele lembrou-se de por um preservativo no bolso e ela optou por não vestir roupa interior sob o vestido vermelho.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990