Opinião
As coisas que vimos no escuro
O alívio sentido por muitos foi o de perceber o quão escravos estamos dos nossos telefones e computadores, da constante necessidade de estar conectado
Não se preocupem, não vou ser mais uma a dizer maravilhas do apagão (ai os passarinhos, e os pirilampos e falar com os vizinhos)! Como é evidente, um apagão desta magnitude e duração trouxe caos para a maioria, problemas na prestação de serviços essenciais, algum prejuízo, e muita ansiedade.
Mas, no meio de tudo isso, como todas as coisas más, também nos permitiu ver algumas coisas para as quais estamos tão cegos no meio de tanta luz artificial. Falo-vos de duas.
A primeira está, de alguma forma, ligada a esta sensação que acima desvalorizei de maravilha no caos. O que algumas pessoas se aperceberam, por momentos, não foi da maravilha da escuridão, mas sim da agonia que é a maioria dos nossos dias.
O alívio sentido por muitos foi o de perceber o quão escravos estamos dos nossos telefones e computadores, da constante necessidade de estar conectado, do zumbido eléctrico contínuo que é a nossa existência. De tal forma que até para descansar disso usamos os mesmos instrumentos, nas redes sociais, na televisão, no ouvir coisas. Já não sabemos o que é silêncio, nem tão pouco imaginar uma vida menos electrizada e, acima de tudo, menos corrida.
A segunda ajuda a entender a primeira e, claro, mostra-nos uma vez mais como o capitalismo consegue sempre tornar uma coisa má em algo pior: o apagão pôs a nu como a ditadura da “eficiência” e redução de custos nos colocou num cenário de excesso de simplificação e consequente ausência de redundâncias no sistema que nos permita estar prevenidos com um plano b.
O que aconteceu no apagão, é o que nos acontece no trabalho: as equipas são tão espremidas para lá das suas capacidades, que no dia em que alguém fica doente (já nem digo férias), o trabalho desmorona, a cadência vai-se, o ritmo frenético simplesmente pára, ao ponto de ninguém conseguir desempenhar a sua função.
Como sempre, a natureza mostra-nos a solução. Ecossistemas complexos e redundantes (o ter tempo para fazer com calma, para pensar, para observar enquanto o colega desempenha uma função) podem parecer ineficientes, mas são o que garante uma existência harmoniosa e equilibrada, são o que permite uma coisa que nunca deixará de acontecer: falhar.
Pode dizer-se que foi ironicamente iluminadora a escuridão? Pode, mas não sejamos pirosos!