Opinião

Ampliar a imaginação política

26 jun 2021 15:45

Se alguém afirma não ver outros caminhos, não significa que não existam, mas que não são observáveis a partir do lugar em que o discurso é formulado

Sempre que um discurso é produzido, há um conjunto de escolhas envolvidas, que podem ser mais ou menos conscientes.

A linguagem usada, o ponto de vista do argumento ou o que cabe ou fica fora do enunciado resultam de opções que tornam a neutralidade discursiva uma meta sempre por atingir.

O lugar de onde o interlocutor fala, isto é, a posição que o sujeito ocupa em sociedades fortemente marcadas por desigualdades de poder, influencia essas escolhas.

As convicções ideológicas também. Mais importante do que a fantasia da neutralidade é situar os discursos.

Por isso, quando lemos uma notícia ou um texto de opinião, tão importante como perceber se são verdadeiros ou falsos os factos narrados é fazer perguntas sobre o que não é expresso: foi pensado a partir de que lugar? O que ficou fora do discurso? Que relações de poder são silenciadas?

A escrita deste texto, por exemplo, envolve opções, que realizo a partir do meu lugar, das minhas experiências, das minhas convicções: sou mulher, sou socióloga, sou doutorada, sou investigadora, sou docente universitária, sou trabalhadora precária, já senti na pele o privilégio e a opressão, sou de esquerda, sou feminista, sou antirracista com muito para aprender.

Fazer estas afirmações não é paroquializar a escrita, mas assumir de onde vem e o que a sustenta.

Se alguém afirma não ver outros caminhos, não significa que não existam, mas que não são observáveis a partir do lugar em que o discurso é formulado.

A austeridade imposta na Europa depois de 2010 foi justificada pela inexistência de alternativas. “Dentro do capitalismo neoliberal” é o que ficou quase sempre por dizer.

Quando a ideologia é hegemónica, as desigualdades de poder que sustenta são naturalizadas ou tornadas invisíveis.

O uso do masculino universal para falar de justiça social invisibiliza as desigualdades de género.

Dizer que todas as vidas importam é uma verdade que oculta que alguns corpos são reiteradamente desumanizados e precisam muito mais de proteção do que outros.

Falar de empreendedorismo, resiliência ou igualdade formal individualiza o (in)sucesso, divide para reinar, e mascara as imensas injustiças sociais que alicerçam o capitalismo neoliberal.

Os problemas não são individuais, são parte do sistema e só se superam com luta coletiva e mudanças estruturais.

Reivindicar mais diversidade nos debates públicos não é defender a inclusão numa ordem inalterável, mas o alargamento dos lugares de enunciação e, assim, das possibilidades de refletirmos coletivamente sobre o presente e o futuro.

É por isso que os movimentos sociais não se defendem apenas a si próprios.

Ouvir mais as mulheres, as pessoas racializadas ou os/as trabalhadores/as precários/as é ampliar coletivamente o horizonte da imaginação política.

Afirmar que extrema direita e esquerda radical se equivalem é brutalmente desonesto.

Desumanizar categorias de pessoas e silenciar vozes é completamente diferente de reivindicar a interpretação do mundo e das alternativas a partir de mais e mais diversos lugares.

Diz um conhecido ditado africano que enquanto os leões não tiverem os seus próprios historiadores, a historia da caça glorificará os caçadores. E a própria caça, podemos acrescentar.


Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990