Opinião

A perda

10 dez 2021 15:45

Não podemos pactuar com um sistema educativo onde se criem em viveiros crianças “totós”, imaturas ou alienadas

Carlos Neto, nosso conterrâneo, Professor Catedrático na Faculdade de Motricidade Humana, vem alertando há já alguns anos para a circunstância de as nossas crianças estarem a perder competências, habilidades, saber-fazer, muito em parte devido ao facto de ficarem horas e horas amarradas à televisão, ao computador e depois aos telemóveis.

Perda da socialização, por falta de relação pessoal de uns com os outros e dos “jogos” sociais, perda de motricidade, que só as brincadeiras do “mexer” podem dar; perda de engenhosidade e capacidade criativa que só o brincar, o jogar, fazer e experimentar podem capacitar.

Entre elas a perda do contacto intenso com o ar livre e a natureza e com os desafios que esse contacto traz no desenvolvimento das crianças.

São perdas graves na maturação psicológica, até no desenvolvimento cognitivo, que já estão a revelar as suas consequências.

Já lá vão quase vinte anos e lembro-me que estava numa das “aulas” extracurriculares do Clube de Teatro, com os alunos do 8º ano, já na fase dos cenários.

Tentava com eles construir uma grade em ripas de madeira, para depois esticar o papel de cenário e poder pintar sobre ele.

Já me ia admirando pela inépcia de todos os rapazes e raparigas do grupo em conseguirem serrar uma simples ripa, mas fiquei boquiaberto quando passei o martelo e os pregos e nenhum deles se afoitou a pregar as duas ripas, uma sobre a outra.

- “Mas vocês, que vivem numa aldeia, nunca pregaram um prego na vida?” – perguntei, em desespero de causa, também por me aperceber que o trabalho ia sobrar todo para mim.

Lembro-me ainda que numa dessas sessões, onde mais descontraídos podíamos falar de vários assuntos, interroguei-os sobre os seus avós.

Mesmo vivendo em casas muito perto, pouco se juntavam, para além dos almoços em família.

Poucos sabiam as idades dos seus avós e alguns nem as profissões que tinham tido, ou as coisas por que tinham passado na vida.

Um ou outro sabia que tinham sido emigrantes, um ou outro tinha uma relação mais emotiva com o avô ou avó. Nenhuma curiosidade para aí além, nenhuma ligação especial.

Essas são ocasiões de compreensão decisiva que acontecem na nossa vida pessoal ou profissional.

Pouco significado teriam não fosse o meu espanto ao verificar que há momentos de mudança intergeracional que inexoravelmente nos confrontam e nos deixam incrédulos.

Curiosamente foram esses mesmos alunos que me deram em primeira mão a novidade do IFive e depois do Facebook.

Os professores e pais da minha geração apanharam esse momento decisivo, complexo, rico, perturbador, da mudança acelerada, de um fabuloso mundo novo, mas onde todos intuímos que se está a perder alguma coisa.

É nossa responsabilidade, da família e da escola, ter consciência do fenómeno de perda, antecipar as piores consequências e estruturar um sistema educativo que não se deixe deslumbrar e iludir pelas novas tecnologias ao ponto de deixar perder o que é essencial.

Não podemos pactuar com um sistema educativo onde se criem em viveiros crianças “totós”, imaturas ou alienadas.