Opinião

A amiga Ritalina

30 jun 2021 16:46

Quantos de nós gostaríamos de ter num comprimido a cura de determinada doença?

Há um assunto do qual sinto que tenho de falar, apesar da controvérsia que geralmente se instala. Falo da prescrição de psicoestimulantes (*1) em crianças com défice de atenção comprovado e dos benefícios a ela associados. Sim, porque quando se equaciona a terapia farmacológica numa consulta de neurodesenvolvimento é porque se acredita que as suas vantagens serão claramente superiores aos potenciais efeitos adversos. Mal comparado, é como decidir se uso ou não os meus óculos velhos e antiquados. Posso não os usar para não ter um ar tão pesado, mas é certo e sabido que não vou ver um palmo à frente dos olhos. É mais importante ver ou parecer bem?

Eu sei que este é um tema polémico. Existem muitos preconceitos e muitas crenças infundadas em relação à medicação. Há até quem acredite que estes fármacos se utilizam para roubar a energia de ser criança. E sei também que atualmente há uma tendência para hipervalorizar sintomas e antecipar diagnósticos, muitas vezes mal explorados. Todos estes mal entendidos atropelam o avançar das capacidades das crianças e impedem a utilização atempada de estratégias adequadas.

Eu não sou a favor da medicação, a não ser que haja benefício inequívoco para a criança e indicação científica evidente. Guio-me pelos peritos e pelas guidelines internacionais. E guio- me essencialmente pelos resultados que vejo antes e depois.

A proposta de intervenção farmacológica não é dada de ânimo leve, ao contrário do que muitos julgam. A medicação é sugerida em função das repercussões dos sintomas presentes e apenas quando há um importante prejuízo na aprendizagem, na dinâmica familiar, social e escolar, ou seja, quando existe uma clara evidência de que os sintomas interferem ou reduzem a qualidade do funcionamento social, académico ou ocupacional da criança. E, bem feitas as coisas, outras alternativas de intervenção terão já estado em cima da mesa, contudo insuficientes, cabendo pois ao médico, experiente e especialista no assunto (idealmente um
pediatra do neurodesenvolvimento ou neuropediatra), perceber a sua viabilidade. Do outro lado, estarão naturalmente os cuidadores da criança que depois de devidamente esclarecidos optarão pelo tratamento a seguir.

Pão pão, queijo queijo. Há prós e há contras e há um prato da balança que pesa mais. Importa saber qual.

Como qualquer fármaco, os psicoestimulantes não estão isentos de efeitos secundários. Contudo, esses efeitos raramente obrigam à suspensão efetiva do tratamento e com ajustes ultrapassam-se. O efeito mais frequente é a diminuição do apetite durante o período de ação do medicamento, mas que normalmente não leva a perda ponderal; a insónia (dificuldade em adormecer) que tende a desaparecer; dores de cabeça e mal estar digestivo que desaparecem habitualmente após a primeira ou segunda semana de terapêutica; e irrequietude no rebound (ressurgimento dos sintomas que estavam ausentes durante a ação do medicamento).

Os benefícios podem ser vistos a muito curto prazo. Ao atuarem ao nível do sistema nervoso central, os psicoestimulantes aumentam a atenção (pré requisito cognitivo da aprendizagem) e reduzem os comportamentos impulsivos, melhorando o desempenho da criança, a aprendizagem, a sua motivação e o seu sentimento de competência.

Esta medicação não provoca dependência, sintomas de abstinência ou habituação, havendo ainda a possibilidade de uma suspensão imediata. A ideia é sempre aumentar os níveis de atenção da criança, mas os efeitos fazem notar-se também noutras áreas. O sono, por exemplo, poderá melhorar, uma vez que algumas situações perturbadoras, potenciadas pela desatenção e impulsividade, deixam de estar presentes. Por vezes, até a linguagem começa a despontar. Muitas vezes quebra-se um círculo vicioso negativo de insucesso académico, pessoal e relacional, condição que terá um impacto gigantesco na saúde psicológica da criança.

Quando comecei a trabalhar na área do neurodesenvolvimento, confesso que estranhei crianças tão pequenas precisarem de medicação. Para mim, que cresci saudável toda a vida, felizmente, a toma de medicação foi sempre e apenas para situações SOS e nunca tinha sequer pensado no outro lado da moeda.

Mas bem contextualizadas as coisas, se existe perturbação do neurodesenvolvimento é porque alguma coisa não está de facto como devia. Por alguma razão, o normal desenvolvimento da criança sofreu alterações, logo as propostas de intervenção terapêutica terão naturalmente de ser diferenciadas. E ainda bem que assim é. Quantos pais, em consulta, temem não haver nada a fazer? Quantos pais anseiam por uma solução? E quantos de nós gostaríamos de ter num comprimido a cura de determinada doença?

Papás, na suspeita de um défice de atenção, escolham para avaliar os vossos filhos um médico especialista. Alguém que tenha em conta a história clínica, os critérios de diagnóstico internacionalmente definidos, as comorbilidades associadas, os diagnósticos diferenciais. Alguém que vos apresente as metodologias de avaliação, o plano de intervenção proposto e o prognóstico, promovendo em todas as circunstâncias o processo de esclarecimento de dúvidas e de preocupações.

(*1) Refiro-me ao Metilfenidato (Concerta®, Ritalina LA® e Rubifen®)

As crianças com défice de atenção têm uma diminuição da dopamina cerebral e estes
fármacos repõem os valores deste neurotransmissor para que as células responsáveis pela
concentração possam funcionar.