Viver

Uma rua direita torta e uma carreta cheia de terra de Pombal

21 ago 2016 00:00

Ladeiras que fazem subir carros desengatados, marqueses que foram até Lisboa em cima de carretas cheias de terra de Pombal, um amor à espera do Juízo Final e um rei que não mandou plantar o Pinhal de Leiria. Serão histórias dignas dos X-Files?

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Jacinto Silva Duro

Uns são mitos urbanos, outros são verdadeiros mitos rurais e outros nem sequer são mitos mas, diz quem os viveu, verdades inquestionáveis. Neste artigo juntámos alguns do mais interessantes mitos e segredos que existem na nossa região.

Não procurámos os mais conhecidos e óbvios, como o dos três segredos de Fátima ou a padeira de Aljubarrota, antes optámos por procurar alguns que já caíram no esquecimento e outros que ainda não figuram no conhecimento público.

Comecemos pela “cidade do Lis” e por uma lengalenga que toda a gente conhece: “a rua direita é torta; os sinos não estão na Sé; o rio corre para o norte; em Leiria, tudo assim é!” Pois é, Leiria tem três segredos.

Neste caso, não são mitos, mas factos. Não, não são segredos ligados ao divino, como muitas vezes acontece na cultura popular, mas curiosidades muito terrenas. A cidade poderia ser, facilmente, a visada da música Mundo ao Contrário, dos Xutos e Pontapés. Vamos por partes.

A rua direita é torta - o nome é grafado em minúsculas, pois essa não é a verdadeira e oficial designação dessa antiga artéria da Leiria medieval - e segue o costume de muitas vilas e cidades portuguesas de cognominarem de “direita” uma via tortuosa e cheia de voltas.

"Rua Direita" é uma deformação [...] de “rua directa”, que normalmente liga a igreja principal de uma localidade à saída mais importante, embora existam variações: entre duas igrejas, entre sé e sede do governo local, entre igreja e torre de menagem. O facto de serem ruas antigas faz com que normalmente sejam bastante acidentadas, mas, como foram, em tempos, a rua mais importante, ou pelo menos uma das mais importantes, da povoação em causa”, sublinha Edite Prada, consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

E já que estamos a falar deste assunto, vejamos a razão de grafar com minúsculas “rua direita”. Dizem os bons costumes da sintaxe da língua portuguesa que assim deve ser, pois esse não é o nome da rua, mas a sua designação popular. Em Leiria, a “rua direita”, tem, na verdade, o nome de rua Barão de Viamonte (da Boavista).

Celebra a personagem histórica que nasceu no Porto e que foi também jornalista, advogado, empresário agrícola e político mas que se finou por terras do Lis, em 1891. Em Leiria, ocupou um cargo semelhante ao de governador civil e fundou a Sociedade Artística Musical dos Pousos, tendo feito de Eça de Queirós, seu grande amigo, um dos primeiros e maiores sócios beneméritos da SAMP.

Voltemos agora a nossa atenção para o facto de o rio Lis correr para norte. Sabia que há celeuma sobre se o curso que corre dentro da cidade seria o Lena ou o Lis? Há quem acredite que, em tempos o nome dado ao rio que atravessa Leiria seria apelidado de Lena e o Lis seria o que a ele se junta a montante da cidade.

Um poema de Rodrigues Lobo terá contribuído para a confusão ao ponto de se terem trocado os nomes dos cursos de água. O Lis já foi navegável em quase toda a sua extensão, mas o corte sistemático da floresta diminuiu a quantidade de água no seu curso, reduzindo-o a pouco mais do que um pequeno ribeiro, durante o século XX.

O rio corre de sul para norte, na zona de Leiria, como acontece com o Sado e o Mira, em contraste com a maioria dos rios portugueses. Para complicar as coisas, extensão e complexas obras mudaram o curso do rio, emparedando- o, praticamente da nascente à foz.

Em Leiria, na zona do Marachão, os grossos muros e os grande taludes de terra transformaram-no num canal urbano, que desenha uma curva de oeste para este. Os rios, em Portugal, correm para o mar, a oeste. A torre da sé é no castelo. É verdade. Leiria tem uma catedral que não tem torre.

A razão para isso é simples e prática. Com uma torre já construída desde os tempos da Reconquista, num local estratégico, que permitia que os sinos fossem ouvidos por quilómetros em redor, optou- -se por reformar a velha torre da Porta do Sol do castelo e transformá-la em suporte para os pesados sinos da Sé.

Para quê construir uma torre sineira nova, junto à Sé, no sopé de um monte, quando se pode usar uma que já está a quase no topo dele e, assim, avisar quem trabalha nos campos de que está na hora de mais uma das muitas orações diárias?

A ladeira que faz os carros subir estrada acima
Fazemos agora uma pequena viagem até ao norte do distrito. Mais precisamente até Ansião, mesmo no limite do concelho, com Soure, e do distrito, com Coimbra. Vamos conhecer a história de Helder Bernardino.

Emigrante, natural de Santiago da Guarda, a viver há três anos na Noruega, não acreditou quando um amigo lhe falou de uma rua, com uma ladeira, onde os carros, desengatados em ponto-morto, sobem a estrada. “Fiquei curioso, com dúvidas… Depois tive de ir ver para confirmar.

Ouvi falar de mais sítios onde isso acontece, como o Bom Jesus, em Braga, na Serra da Boa Viagem, na Serra de Sintra, na Covilhã, mas dizem que nesses sítios há uma ilusão de óptica”, conta.

Com o amigo, meteu-se à estrada e seguiu pelo caminho para o parque de merendas perto de Estrada de Anços, em direcção a Cabeça da Corte Sabugueiro e Malavenda, já na freguesia de Pombalinho, Soure. Pararam junto ao colector de águas. Pragmático convicto, Helder levou uma bola. Largou-a e ela não subiu a estrada. Despejou água e o resultado foi o mesmo. Mas, quando desengataram o carro, ele começou a subir a ladeira.

Magia? Sobrenatural? Ilusão de óptica? Não, Helder Bernardino tem outra explicação mais científica: “o plástico e a água não são atraídos pelo magnetismo”. “Aquilo acontece devido a uma rocha de material ferroso que ali existe no solo e tem propriedades magnéticas que atraem o metal dos carros”, garante. No Youtube, há vários filmes sobre este fenómeno e quem quiser experimentar a subida perto da Estrada de Anços, basta introduzir as seguintes coordenadas no GPS: 39.974030, -8.559234.

Uma carreta cheia de terra… de Pombal, no Terreiro do Paço
Por que razão alguém levaria uma carreta cheia de terra, de Pombal até ao Terreiro do Paço? Este é um mito que sofre de esquecimento colectivo e já poucos o referem, embora tenha sido muito popular até há alguns anos.

Reza o mito que se terá passado pouco depois de D. Maria I, primeira rainha a subir ao trono em Portugal e a monarca da Viradeira, movimento conservador que se seguiu ao período de reformas e modernização de Portugal do Marquês de Pombal, ter chegado ao trono, na sequência da morte de D. José, seu pai.

Influenciada pelos seus conselheiros conservadores e defensores das velhas elites portuguesas, a rainha exilou Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro conde de Oeiras e marquês de Pombal, em terras de Pombal, tendo-o proibido de “tirar os pés dessa terra” sob pena de morte.

José Domingues, agricultor reformado de 72 anos, recorda- se de a professora primária, a “não muito saudosa Gracinda”, pedagoga típica do Estado Novo, sempre pronta a aplicar dezenas de reguadas como facilitador de obtenção de conhecimento, contar essa história, como exemplo da esperteza e sagacidade do político, antigo primeiro-ministro de D. José.

“Revoltado com o reviralho e reversão das suas reformas progressistas que até estavam a resultar na transformação de Portugal num país mais moderno e industrializado, já velho, mas sempre sagaz como uma raposa manhosa, o marquês, conta a ‘estória’, teve uma ideia que lhe permitiria ir a Lisboa, à Corte, falar com a rainha, sem tirar os pés da terra para onde havia sido exilado, como lhe havia sido ordenado.

Mandou encher uma carreta com terra do seu domínio senhorial e desceu até à capital. Ali chegado, a monarca e os seus conselheiros terão ficado aziados com a sua presença, mas nada puderam fazer, uma vez que Pombal cumpriu o que lhe havia sido ordenado e tiveram de o ouvir”, conta José Domingues.

A história não regista uma alteração das medidas da Viradeira e, depois de um período de franco desenvolvimento, Portugal voltou a estagnar, numa sociedade dominada pela Igreja Católica fechada da época e pelos nobres latifundiários.

O Pinhal do Rei foi mandando plantar por D. Dinis? Não, não foi
É um dos grande mitos da história nacional e da Marinha Grande. D. Dinis, que foi um dos maiores poetas do Portugal Medieval, amante caloroso e grande impulsionador da língua portuguesa é cognominado de O Lavrador, por ter mandado plantar o Pinhal Real de Leiria.

À entrada da praia de São Pedro de Moel, uma estátua do monarca e da sua consorte D. Isabel homenageia o “rei lavrador” e a sua visão que terá providenciado a madeira necessária ao início da saga dos Descobrimentos portugueses.

Ora, nem foi D. Dinis quem mandou plantar o pinhal, mas seu pai D. Afonso III, nem o pinho era a madeira de preferência para a construção das naus, mas a madeira de carvalho, árvores que, até hoje, depois do corte sistemático para utilização na indústria naval, existem em pouca quantidade em Portugal.

O pinhal teve um papel na saga marítima ao fornecer o pez, material inflamável e impermeável usado para calafetar os cascos e extraído da resina dos pinheiros. Segundo a autarquia da Marinha Grande, o pinhal tem uma superfície de 11.080 ha, abrangendo as freguesias da Marinha Grande e de Vieira de Leiria.

O “pinhal de Leiria”, agora apelidado como Pinhal do Rei, marcou o início da plantação intensiva de monocultura do pinheiro bravo, espécie oriunda da bacia mediterrânica. Foi inicialmente mandado plantar por D. Afonso III, que ocupou o trono entre 1248-1279, como forma de secar os pântanos da zona e fixar as dunas.

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