Viver

Uma orquestra em cadeira de rodas, um concerto inédito e um diálogo em Leiria sobre cultura e participação

28 abr 2023 17:49

O ensemble Ligados às Máquinas, que junta elementos da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, reforça o debate sobre a acessibilidade na arte, com um concerto único em Leiria, durante o festival Nascentes

uma-orquestra-em-cadeira-de-rodas-um-concerto-inedito-e-um-dialogo-em-leiria-sobre-cultura-e-participacao
Paulo Jacob: "É sair fora da caixa, fora da rotina, é poder estar em cima de um palco, o que tem um valor simbólico”
DR

“Quando estamos a falar de acessibilidade, falamos de vários tipos de acessibilidade: cognitiva, geográfica, emocional, física. E é um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido”, mas oferece, ainda, “muito para fazer”, comenta Gui Garrido, director artístico do Nascentes, festival organizado pela Omnichord que ontem divulgou as primeiras novidades do programa de 2023, em que se destaca a residência de criação do projecto Ligados às Máquinas, com elementos da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, anunciado pela organização como “a primeira e provavelmente única orquestra de samples em cadeiras de rodas do mundo”.

“A vinda dos 5ª Punkada [banda rock também nascida na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra] no ano passado ao Nascentes criou e proporcionou uma série de conversas completamente transversais sobre o que é que é a acessibilidade”, adianta o programador e gestor cultural ao JORNAL DE LEIRIA, que volta ser parceiro de comunicação do Nascentes, onde, com o musicoterapeuta Paulo Jacob, os Ligados às Máquinas vão apresentar ao vivo, pela primeira vez, estruturas que se baseiam em samples cedidos por mais de 30 artistas como, entre outros, a Orquestra e o Coro da Gulbenkian, Salvador Sobral, Samuel Úria, Joana Gama, Ana Deus, Rita Redshoes, Bruno Pernadas, Moullinex, Coro Ninfas do Lis, Joana Guerra, José Valente, Surma, Gala Drop, Lavoisier, Cabrita, First Breath After Coma, Vasco Silva e João Maneta.

“Porquê os Ligados às Máquinas virem ao Nascentes? A questão era, quase, como não? Como não, não poderiam vir?”, questiona Gui Garrido, antes de realçar a “relevância artística” do ensemble, que utiliza hardware e software específico para formar novas estruturas e texturas rítmicas e melódicas a partir de experiências de conjugação.

“É isso que permite a cada um deles poder participar e disparar um determinado sample no momento em que é pedido, portanto, eu funciono mais ou menos como uma espécie de regente, de maestro”, explica Paulo Jacob.

Círculos de proximidade

As obras recentemente realizadas nas instalações da colectividade de Fontes desencadearam diálogos com a Omnichord que servem a Gui Garrido para expressar a perspectiva que move a equipa responsável pelo evento: “Que cada vez mais, os projectos, e as nossas cidades e as nossas vilas e as nossas aldeias, sejam realmente corpos diferentes que nos vão sempre fazer pensar como é que temos de melhorar as coisas. Problemáticas há em todo o lado. Sem nos confrontarmos com as necessidades, nunca vamos criar soluções”.

Ao mesmo tempo, há a ambição de “não fazer a coisa mais simples, mais imediata, mais óbvia”, de quem percebe “o impacto” que os projectos “conseguem ter”.

“É a tentativa constante de criação de círculos de proximidade”, conclui Gui Garrido. “Interessa-me muito que realmente as manifestações artísticas possam criar uma relação maior”.

No Nascentes, os nove membros dos Ligados às Máquinas vão, também, mostrar repertório mais antigo, num espectáculo inédito que assinala 10 anos de actividade.

No caldeirão fervilhante em que intervêm pessoas com alterações neuromotoras severas por paralisia cerebral ou doença degenerativa há fado, kizomba, hard rock, techno e até sons da publicidade e cada uma expressa uma “identidade sonora” e a música “que lhe é mais significativa e mais importante”.

“Os elementos do grupo vão já tendo opinião crítica e alguma sensibilidade estética e organizacional relativamente àquilo que ouvem”, refere Paulo Jacob. E “dá-lhes asas”, a possibilidade “de participar” em algo “que é normalizante” e que “respeita, acima de tudo, aquilo que eles são”.

Num mundo em que a tecnologia, tantas vezes, nos aprisiona e comanda, com os Ligados às Máquinas acontece o inverso e a orquestra é sinónimo de maior liberdade.

Um valor simbólico

“É sair fora da caixa, fora da rotina, é poder estar em cima de um palco, o que tem um valor simbólico, porque, normalmente, as pessoas em cadeiras de rodas vêem sempre o resto das pessoas de baixo para cima; no palco, há uma inversão de papéis. É o artista, e para além do artista, a perspectiva é completamente diferente”, salienta o musicoterapeuta.

“Em termos de modus operandi, nós às segundas-feiras temos o dia todo para os Ligados às Máquinas, trabalhamos de manhã e à tarde, e o que fazemos é analisar, ouvir, todo o material que nos foi enviado”, descreve Paulo Jacob. “E, depois, fazemos algumas experiências de conjugação. Será que a voz da pessoa Y ficará bem com uma batida? Vão-se formando ideias”.

No Nascentes, o espectáculo deverá prolongar-se durante uma hora e será a primeira apresentação ao público do ensemble da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra desde Fevereiro de 2020.

“Ao longo do processo, eles começaram a perceber que não era só a música, qualquer elemento sonoro poderia ser passível de poder ser integrado. Então, começaram a fazer recolhas relativamente, por exemplo, à publicidade, coisas de que se lembravam, que fazem parte das suas memórias”, detalha Paulo Jacob. “É uma mescla bastante interessante”.

“Os Ligados às Máquinas, para além de serem um grupo musical, acabam por ser uma espécie de recurso para dar a voz a estas pessoas e para lhes dar a possibilidade de poderem participar”, aponta.

Numa época que reclama a presença em redes digitais de conexão, e em que as máquinas estão cada vez mais presentes nos mais variados planos de actividade, Gui Garrido sinaliza, por outro lado, que o processo de trabalho da residência de criação do colectivo da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra no Nascentes passa por, “através de máquinas, angariar sons” que, depois, serão “produzidos por pessoas”.

E um disco dos Ligados às Máquinas a caminho de edição? “É possível”, concede Paulo Jacob. “Só o futuro o dirá”.

Momentos de conexão

Na programação do Nascentes, que vai acontecer nas Fontes, onde nasce o rio Lis, no concelho de Leiria, a Omnichord procura, segundo Gui Garrido, proporcionar “mais momentos de conexão às diversas vidas” e “não só para os corpos que são maiorias”.

O cartaz contempla concertos, residências de criação, espaços dedicados ao público infanto-juvenil, convívios e um jantar comunitário e procura relacionar artistas e espaços, natureza e criação, rasgo e tradição.

“Promovendo a reflexão sobre a natureza, na sua multiplicidade de formas, e o questionamento sobre o modo como nos relacionamos com o outro, com a arte, com a cultura, com a paisagem e como nos transformamos através dessas relações ”, lê-se na primeira nota de divulgação.

Os primeiros concertos já confirmados incluem o duo Lavoisier e o saxofonista Cabrita, a estreia (em data única nacional) do projecto colaborativo ZA! & la TransMegaCobla (que junta os catalães ZA! à dupla Tarta Relena e aos Megacobla) e a festa de raiz africana dos Kriol.

Os habitantes e o potencial das Fontes voltam a ser a principal força motriz do festival, que é desenhado com a comunidade e com a associação sediada na aldeia.

O Nascentes decorre entre 28 de Junho e 2 de Julho.