Sociedade

"Portugal é dos países com melhores taxas de doação de órgãos"

26 nov 2016 00:00

Emanuel Furtado, cirurgião, diz que a transplantação com recurso a dador vido "tem implicações morais e éticas complicadas".

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Maria Anabela Silva

A Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) anunciou, na semana passada, a realização um auto-transplante de fígado. O que tem de inovador esta intervenção, feita apenas em meia dúzia de centros do mundo?

É um recurso técnico que não está indicado para muitos casos. Oferece uma possibilidade terapêutica a alguns doentes que, de outra forma, não podiam ser tratados. Implica um altíssimo grau de complexidade e de risco e, por isso, só muito raramente é executada.

Quais são os principais riscos?

A intervenção tem um risco de mortalidade bastante elevado e riscos de complicações, graves e menos graves, bastante significativos.

Em que é que consiste o auto-transplante?

Consiste em operar o fígado fora do corpo do doente, porque tecnicamente não é possível fazê-lo dentro, devido à localização do tumor ou à necessidade de invasão de certas estruturas dentro e por detrás do fígado.

O órgão é retirado do corpo e tem de se arranjar uma forma de a circulação sanguínea se manter o mais próxima possível do normal. Não podemos esquecer que por detrás do fígado existe a cava, a veia principal do corpo que traz o sangue da parte inferior do corpo para o coração e que tem de ser tirada com fígado.

Por outro lado, ao tirarmos o fígado do corpo, o órgão deixa de ter o sangue a circular nele e entra num processo de degradação. Por isso, tem de ser arrefecido e trabalhado em frio. Depois disso, é preciso fazer uma série de reconstruções e voltar a pôr o fígado no seu sítio.

Neste caso, quanto tempo é que o fígado esteve fora do corpo?

Cerca de sete horas. Já este ano, a unidade de transplantação que lidera voltou a fazer transplantes com a divisão de um fígado por dois receptores.

Esta técnica permite contornar a redução de dadores?

Não resolve totalmente, mas alivia. Esta solução já foi praticada na nossa unidade várias vezes em anos passados. O retomar desta técnica aconteceu porque a equipa cirúrgica atingiu, no seu todo, um nível que o permite fazer.

Esta opção pode representar entre 10 a 20% do número total de transplantes de um centro. É uma ajuda pequena, mas ainda assim significativa para revolver o problema sempre presente da falta de órgãos para transplante.

O recurso a dadores vivos também é uma opção?

Também é uma hipótese. A transplantação de fígado com dador vivo em Portugal foi iniciada em Coimbra. Mais tarde o Hospital Curry Cabral também passou a fazê-la. No entanto, os números são relativamente pequenos.

Foi efectuada por diversas vezes e com sucesso, numa fase em que a distribuição dos órgãos para as crianças era muito desfavorável em relação ao que existe hoje. Em Portugal e no mundo, a pressão para usar o dador vivo, que tem implicações morais e éticas complicadas, depende do número de órgãos cadáveres que estão disponíveis.

Portugal é dos países com melhores taxas de doação de órgãos cadáver. Como tal, a pressão para recorrer a dador vivo é mais baixa. Mas é um dos recursos técnicos que temos disponíveis e que estamos capazes de executar. Esta ano ainda não tivemos nenhum caso, mas, no ano passado, executámos um transplante com dador vivo e executá-lo-emos as vezes que forem necessárias.

Existe lista de espera para transplantes hepáticos?

Existe sempre lista de espera para transplante hepático. A Noruega é o único país do mundo onde esse problema é quase inexistente, porque a taxa de doação é suficiente para suprir as necessidades. Em todos os outros países existe lista de espera e morte por falta de órgãos. Portugal não foge à regra.