Sociedade

Luís Sousa Ferreira: “Música está a tirar a Leiria o catálogo de cidade provinciana, sem projectos culturais, sem dinâmica, nem criação”

1 mar 2018 00:00

Entrevista | Director do Bons Sons dá receita para programação cultural municipal com objectivos, enaltece identidade de Leiria como centro produtor de música indie, mais-valia que está a ser ignorada pelo poder e dá conselhos para a capital da cultura.

Jacinto Silva Duro

Estudou nas Caldas da Rainha e vive no eixo Leiria - Tomar. Foi uma testemunha directa da passagem do tempo e da alteração do território, desde que nasceu. Que modificações assinala em Leiria?
Recordo-me das excursões ao Continente de Leiria! Falando de quem vê de fora, a escala e a força económica é, hoje, muito maior. É uma capital de distrito, com uma escala industrial que permitiu fixar população, tem o instituto politécnico… A nível cultural, há cidades que têm sorte. E a sorte de Leiria é a sua iniciativa privada cultural. Sou fã da Omnichord Records e de todo o trabalho que se faz na música independente. Para quem está de fora e não conhece a cidade, de repente, parece que Leiria tem uma enorme dinâmica e esfera culturais... mas é uma ideia que não é bem verdadeira. Há um núcleo que tem grande perseverança e que trabalha muito - sem apoios, sem espaço, sem equipamentos nem financiamentos, ao contrário do que seria de esperar para algo que é uma marca da cidade. O poder não percebeu que agentes privados criaram uma marca territorial muito forte para a região. A música está a tirar a Leiria o catálogo de cidade provinciana, sem projectos culturais, sem dinâmica, nem criação. Há cerca de uma dezena de bandas, e eventos como o Entremuralhas, que lhe dão uma dimensão nacional e, agora, internacional. E há novos grupos a surgir todos os anos. Isto é uma marca muito valiosa e difícil de construir, essencial para a comunicação do território. Leiria tem de aproveitar, mas não consigo ver uma estratégia que poderia ser um alicerce para receber este tipo de estímulos - que, como disse são uma sorte... Tomara outras cidades, sem investirem, terem este movimento que lhe cria, gratuitamente, uma marca territorial. 

Em cima da mesa, está a proposta de candidatura da cidade a Capital Europeia da Cultura, em 2027. Num campeonato que conta com cidades como Braga ou Coimbra, como concorrentes, o que recomendaria a Leiria para alcançar o objectivo?
Uma candidatura a Capital da Cultura não se assemelha a um campeonato de futebol, com equipamentos e etapas. Os modelos são cada vez mais difíceis de atingir, porque são muito mais integrados. A capital europeia da cultura não pode ser um fim, mas um mote ou ferramenta. Uma cidade que quer acolher esse evento, deve, primeiro que tudo, perguntar- -se por que razão o quer. "Por que razão queremos cometer esta loucura?" A resposta terá de ser: porque reconhecemos, no trabalho cultural, uma mais-valia. Se for por se querer um momento mediático de exposição, com uma lógica de afirmação de pequeno poder, a candidatura morreu antes de nascer e jamais será aprovada. A lógica não deve ser municipal, tem de ser regional, porque o investimento é muito grande e a ressaca é duríssima, se não existir uma estratégia integrada antes, durante e após o evento. Com o estádio do Euro 2004, a cidade nem precisa de lições sobre isto. Leiria tem de perceber como é que é sinónimo de cultura. Tem de fazer um trabalho integrado com as associações, com os organismos vivos, com as escolas, com os agentes ligados aos novos públicos. Tem de saber o que, da sua identidade, tem para dar ao mundo. E tem de ter parceiros. Não pode ser uma iniciativa meramente municipal, tem de haver uma relação e uma rede nacionais e perceber como se relaciona com outros pólos de criação artística. E tem de se começar já... sendo que "já", já é tarde. Não se pode esperar pela aprovação da candidatura para começar. É preciso apresentar algo que já tenha sido feito para a comunidade, para que a Europa reconheça esse trabalho cultural. E atenção que investir na cultura não é só programar espectáculos. 

Como vê o futuro do seu filho que é o Festival Bons Sons? Já pensou no evento sem si?
Já. Este ano, deixei de ser presidente do Sport Club Operário de Cem Soldos. Estive 18 anos na Direcção e oito como presidente. Já me era, por razões profissionais e pessoais, difícil continuar a investir tanto tempo naquele projecto. Há pessoas novas na direcção e eu posso sair e o Bons Sons continuará enraizado no território. Este ano, o festival vai mudar muito. No trabalho integrado e à escala, vamos mudar a forma como ele se relaciona com a aldeia. Vamos repensar palcos e dinâmicas, programáticas e o impacto na comunidade. Queremos fazer algo que é inverso aos outros festivais que só querem crescer, crescer, crescer. Não temos marcas a apoiar-nos e isso dá-nos liberdade. A música continuará a ser nacional, vamos manter a relação de confiança com o público e continuará a haver ligação com a aldeia.

A cultura é um instrumento, mas não pode ser um “instrumento político”. Tem de estar, o mais possível, fora da esfera política e da vontade directa do vereador, embora esteja dentro de balizas propostas pelo projecto político autárquico... Ninguém entenderia se fosse um vereador a gerir as questões da saúde

Além de director artístico do Bons Sons, é programador cultural na Câmara de Ílhavo. Como consegue uma pequena autarquia ter uma programação que prima pela presença de bons nomes da cultura, sem compra de espectáculos em pacote?
Tudo se consegue, quando se tem um projecto. Comecei por ser convidado a ir gerir o Centro Cultural de Ílhavo. Temos uma visão multidisciplinar da programação municipal, que vai da arquitectura ao teatro, design ou dança. As associações continuam a ter o seu espaço, mas acrescentámos outras coisas e envolvemos as pessoas. O objectivo é descobrir a linha que nos une e ajustar para servir melhor a comunidade. Queremos devolver aos cidadãos as práticas, o pensamento e o espírito crítico, para que se consigam apropriar das dinâmicas culturais. Tinha sido feito um investimento grande em edifícios e espaços e havia uma abertura do município para fazer com eles algo diferente. Não sabiam bem o quê. Em 2016, lançámos o projecto 23 Milhas, que define a estratégia cultural concelhia. O nome vem da imagem poética do alcance do feixe de luz do farol da Barra, que alcança 23 milhas de distância. É uma relação com o mar, que dá as boas-vindas ao município. É a ideia de um rumo e de um caminho imaterial que se está a traçar. Muitas vezes, as pessoas são muito obstinadas, de forma pouco sensata, com a preocupação da existência de edifícios... quer-se espaços e mais espaços, porque são coisas materiais, que conseguem aperceber. Mas, muitas vezes, eles não correspondem às solicitações, porque não foram desenhados com um projecto em mente. Tivemos de adaptar o nosso projecto aos quatro edifícios que recebem eventos culturais no concelho e aproveitámos para os renomear: Laboratório das Artes, que é um espaço de pensamento, pesquisa e formação, a Fábrica das Ideias, um espaço de residência e criação, o Cais Criativo, um local de intercâmbio, e a Casa da Cultura de Ílhavo, que é o palco da programação por excelência. Ílhavo recebe o que de melhor se faz no mundo e a Gafanha devolve ao mundo o que melhor se faz na região.

Qual é a sua concepção de “cultura”
Devido a lógicas pós-Estado Novo e emburguesamento pós-25 de Abril, tivemos uma prática cultural que segue a lógica de a cultura ser “a cereja no topo do bolo”. Para mim, a cultura é "o bolo". É parte integrante do dia-a-dia, da dinâmica de identidade, da comunicação, da relação de ego, de pertença do território... A ideia de a cultura ser um luxo criou a noção de que, quando há dinheiro "há palhaços" e, quando não há... É uma lógica pouco consequente, de picos, pouco interligados e relacionados com a formação e aprendizagem das pessoas. Nós temos um plano de mediação, que é transversal a tudo, com ligação às escolas e serviços educativos, mas também com trabalho de especialistas, com a comunidade artística, tanto local, como da Diáspora, com os seniores e com quaisquer grupos que, por qualquer razão, precisam de actividades diferenciadas. Queremos mediar o desinteresse da sociedade, que resulta de um modelo educativo muito expositivo, de uma televisão apática e de uma ausência total de estímulos intelectuais.. Diz-se que se quer criar uma sociedade de empreendedores, mas não há sequer uma base de referências, capacidade de pesquisa e espírito crítico. Não há cultura quando há conforto, ela tem de nos fazer doer, tem de nos fazer questionar. Não se pode confundir o entretenimento, que faz parte da cultura, com a cultura, porque, de repente, temos pais revoltados com uma peça de Natal fantástica e cheia de significado, mas que é triste e faz os meninos chorar... e temos de a tirar da programação.

Porque não tem "palhaços"?
Sim! É isso. Não sei estar nesta constante epifania cómica, porque a vida não é assim. Não é esta hiperprotecção, que varre para debaixo do tapete o que não queremos, que se criam cidadãos. Desde o nascimento à morte, andamos a sobreviver e a delegar nos outros o que é importante para nós. Parece a constante necessidade de um povo que ama pouco a liberdade e que precisa de "paizinhos" que lhe diga o que é certo e errado. A programação de um concelho deve espicaçar, provocar, criar contextos de encontro e que mostre o que existe.

Essa é uma das vantagens de um município ter um programador cultural? Ainda hoje, a maioria das cidades e vilas continua a assentar numa programação baseada nas opiniões do vereador da Cultura e de técnicos superiores autárquicos.
A cultura é um instrumento, mas não pode ser um “instrumento político”. Tem de estar, o mais possível, fora da esfera política e da vontade directa do vereador, embora esteja dentro de balizas propostas pelo projecto político autárquico... Ninguém entenderia se fosse um vereador a gerir as questões da saúde. Já o programador deve ter muito conhecimento e referências, ter um olhar muito cuidado sobre o que está a fazer e tem de estar fora da esfera política.

Mas isso será uma pessoa que, dificilmente, agradará a gregos e troianos.
Não se deve ver a cultura como "entretenimento" e isso traz problemas a um Executivo, porque sofre pressão da Oposição, da comunicação social e das associações locais, que, raramente, conseguem entender a diferença entre cultura e entretenimento. Os municípios são reféns de micropoderes provincianos, responsáveis pela cristalização de muitos municípios de média dimensão. Muitas vezes, parece que as associações culturais são as detentoras da frase: antigamente, era assim/sempre foi assim. São bastiões de conservadorismo não empírico. Conservam algo que, muitas vezes, desconhecem e cujo único output são os ranchos, as filarmónicas ou teatros amadores. Nada tenho contra estas colectividades, mas, em vez de serem bastiões activos da cultura popular, onde as pessoas fazem e criam, com base na sua identidade e cultura, são pequenos poderes, com uma relação intrínseca com o p

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