Viver

Lentriscas em Castelo - Uma biozona mesmo boazona

16 jan 2020 11:31

Esta forma integrada de viver o mundo, onde o científico e o tradicional se fundem, onde a comunidade partilha os conhecimentos, as práticas e os produtos, onde o mundo é de todos e para todos, poderá ser uma das várias mudanças que temos que fazer para que exista uma verdadeira oportunidade para a próxima geração.

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O progresso tem sido o motor de uma sociedade competitiva focada num capitalismo liberal, no sucesso e na ascensão social. Especulando apenas, uma maneira de medir este tipo de sucesso da maioria seria analisar o número de intermediários e milhas que percorre cada produto que nós usamos. Os indivíduos e os países em que estes se organizam apresentam como bitola números e gráficos onde o humanismo, a arte e o bem-estar são relegados para plano algum…

Nós estamos a ficar um bocadinho irritados com a atitude destes países… é verdade que gostamos de trabalhos à antiga, pensámos em resolver isto com uma arca e um dilúvio mas como não queremos ser acusados de plágio… decidimos seguir o nosso instinto e, como verdadeiros Homens da Ciência que somos, decidimos aplicar o método cientifico a uma jantarada com amigos que têm uma maneira mais tranquila de lidar com este problema (se bem que me dava uma certo gozo o poder ver o capachinho do Trump a flutuar num oceano purificador).

Os nossos amigos são o Filipe (Pipo) e a Rute. Estes malandros desenharam uma vida em redor de um conjunto de príncipios onde um conhecimento integrado sobre o ambiente (solo e clima), respeitanto a ordem natural, permite que se desenvolvam culturas permanentes com o minímo de ação humana produzindo alimentos com baixa entropia. Estes princípios e respeito pela natureza transbordam para além do mero cultivo, são de alguma forma um modo de vida: a troca direta, o forrageamento e o respeito pela biozona fluem sem radicalismos numa comunidade mais ecológica, onde a sustentabilidade acontece naturalmente. Esta forma integrada de viver o mundo, onde o científico e o tradicional se fundem, onde a comunidade partilha os conhecimentos, as práticas e os produtos, onde o mundo é de todos e para todos, poderá ser uma das várias mudanças que temos que fazer para que exista uma verdadeira oportunidade para a próxima geração. Na componente gastronómica que no fundo é o nosso jogo, tivemos oportunidade de ter uma experiência com duas vertentes, provar os produtos produzidos, recorrendo à permacultura: acelga e tupinambo, bem como os provenientes de pequenos produtores nomeadamente os queijinhos da serra, a morcela do Alqueidão e o pão da Bezerra. Chegámos tarde… outra vez… temos de mudar… bem sabemos!

Os queijinhos da Dona Dionisia a secar ao ar livre
Os queijinhos da Dona Dionisia a secar ao ar livre
As vacas da dona Dionisia, também elas a secar ao ar livre
As vacas da dona Dionisia, também elas a secar ao ar livre

 

O Pipo encaminhou-nos para a casa da dona Díonisia onde fomos buscar queijinhos para o jantar. Secos e frescos. É um privilégio entrarmos numa porta onde não se tem de bater. A senhora cumprimentou-nos amavelmente e continuou as suas tarefas enquanto os queijinhos eram escolhidos. Esta noção de usar o que está perto, o conceito de biozona é algo que era feito pelos nossos avós e pelos avós deles. Todo este cenário, as vacas, a porta aberta, recordam-me de onde venho e para onde quero ir! Acenderam uma fogueira… isto promete… a comida cozinhada na fogueira tem outra cena, além de ser um belo motivo para nos gabarmos aos nossos amigos. Sobre a mesa, guardados por um exército de garrafas, dispunham-se os queijinhos que tinhamos ido buscar, o azeite caseiro e um magnífico pão da Bezerra, um dos melhores que tive a oportunidade de provar. Bons produtos, simplicidade, pequenos nadas que valorizam de forma indelével estes momentos de partilha e de prazer.

Na fogueira era cozinhado o primeiro prato da noite, tupinambo salteado com manteiga, um tubérculo amplamente utilizado na alta cozinha e conhecido como alcachofra de Jerusalém pela semelhança dos sabores apresentados. Foi-nos explicado que durante a segunda guerra mundial, pela falta de batata, este vegetal foi utilizado nalgumas regiões de Portugal como fonte de hidratos de carbono… é curiosa a evolução da alimentação, muitos alimentos e pratos que eram de pura subsistência viriam mais tarde a figurar nas ementas mais refinadas. Sobre este prato é preciso dizer que a confeção escolhida elevou as qualidades do animal…Tem um sabor peculiar, algo mineral com um toque ligeiro de frutos secos. A cremosidade da manteiga enalteceu o prato que íamos devorando enquanto saltavam para fogueira as morcelas de arroz do Alqueidão. As morcelas, tal como outros enchidos, ganham com o fogo… o toque fumado criou uma pele crocante que estabeleceu um delicioso contraste com a suculência do interior… é curioso que numa área relativamente pequena tenha sentido diferenças tão marcadas neste enchido.

Pipo e Rute, a colherem parte do jantar
Pipo e Rute, a colherem parte do jantar
Tupinambo, é bom sim senhor, mas cuidado com os efeitos secundários.
Tupinambo, é bom sim senhor, mas cuidado com os efeitos secundários.
Morcela do Alqueidão saída a estalar da fogueira
Morcela do Alqueidão saída a estalar da fogueira

 

Todas as que provei em Leiria, Batalha e Porto de Mós apresentam uma textura cremosa fruto da cozedura do sangue e do arroz. No Reguengo do Fetal provei de dois tipos, sendo que as minhas preferidas apresentam carne, arroz e uma acidez suave, fruto de um tempero em vinha de alhos. São mais secas e com um palato mais próximo do fumeiro da minha região. As do Alqueidão são deliciosas numa linha intermédia entre as morcelas tradicionais e estas do Alqueidão, têm carne e uma textura semelhante às do Reguengo, apresentando contudo sangue como as restantes. Apesar de ter adorado perdem para as do Reguengo no tempero que poderia ser um pouco mais marcado. A vinha de alhos tem um kick que eu muito aprecio.. Ambas são versões que deveriam de ser exploradas para quem aprecia são dois lados da história de um produto que marca a gastonomia da região Leiriense.

Durante a noite, enquanto derrubávamos as sentinelas, fomos derrubando um conjunto de iguarias que representam o trabalho e a visão deste jovem casal: acelga que cresce livremente, salteada com a gordura da morcela, uma salada de rúcula de final de estação com aquele toque de noz picante bem diferente da de supermercado… com romã para lhe dar aquele contraste, medronhos e amoras fruto da atividade recoletora e um incrível bolo de chocolate, porque podemos… E sim… Podemos!!!! Porque aqui não moram radicalismos nem fundamentalismos, é uma filosofia de vida que se tornou uma profissão. Hoje em dia o Pipo e a Rute desenvolvem diversos projetos onde as experiências da sua horta são materizalizadas em projetos de maior dimensão menos entrópicos do que os tradionais, partilham o seu conhecimento em fins de semana organizados. Se quiseres saber mais sobre o trabalho e vida destes rapazes passa aqui e aqui.

Pipo e Rute, mentores do projecto Liberta-te e nossos anfitriões em mais um jantar à Lentriscas em Castelo
Pipo e Rute, mentores do projecto Liberta-te e nossos anfitriões em mais um jantar à Lentriscas em Castelo

Texto de Bruno Monteiro

Fotos de Ricardo Graça