Sociedade

João Zilhão: Vale do Lapedo "é uma mina que está por explorar"

8 jun 2017 00:00

Arqueólogo diz que o potencial da Bacia do Lis é enorme.

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Ajude-nos a perceber a importância deste crânio humano, cuja descoberta na zona de Torres Novas anunciaram recentemente, no contexto europeu e internacional.
É um fóssil muito bem datado, que passa a funcionar como marco de referência para a interpretação da variação das populações, pela comunidade científica internacional, no continente europeu. Não são muitos os fósseis desta época e bem datados como este não há. Quatrocentos mil anos é muito tempo. A discussão sobre como interpretar as diferenças que se observam nos fósseis desta época passa a ter como ponto central este fóssil, precisamente porque tem muito bom contexto arqueológico e está muito bem datado. Em segundo lugar, ele é importante em si mesmo, pelas características morfológicas que se observam, porque apresenta um mosaico de características que muitos observadores têm associado à definição de espécies diferentes, e nós encontramos essas características supostamente definidoras num só fóssil.

Existe, do ponto de vista da arqueologia, do estudo da evolução humana, uma ligação e continuidade entre a Gruta da Aroeira, na zona de Torres Novas, onde fizeram este achado, com o Vale do Lapedo e a Bacia do Lis?
A continuidade tem a ver com a geografia e a geologia. Do lado de Torres Novas é o rebordo Sul, do lado de Leiria é o rebordo Norte do Maciço Calcário Estremenho. Este problema da interpretação da diversidade, da diferença, foi primeiramente levantado pela sepultura da criança do Lapedo. É outra vez a mesma coisa: encontrámos [na Aroeira] um fóssil que combina características que muita gente usava para definir categorias, entidades, espécies distintas.

Podemos concluir que a Aroeira e o Vale do Lapedo permitiram consolidar a teoria da miscigenação, por alternativa à ideia de várias espécies sem ligação entre si?
A visão já existia, durante muitos anos foi minoritária, mas estes resultados vieram ser provas muito fortes em favor desse ponto de vista que hoje em dia começa a ser bastante popular, para não dizer maioritário, na opinião científica, também porque é nesse sentido que apontam os dados da paleogenética e da sequenciação do genoma nuclear dos neandertais. Temos de pensar na evolução humana como um processo de transformação de antepassados numa população descendente que somos nós. Todas estas formas que aparecem descritas nos manuais, nas revistas, como homo erectus, homo habilis, homo naledi, homo heidelbergensis, são antepassados, porque o Homem evoluiu e as pessoas há meio milhão de anos eram diferentes do que são hoje.

O que estes fósseis, incluindo o Menino do Lapedo, demonstram é que há uma mistura, um encontro, que produziu descendência.
Exactamente. No passado a Humanidade era muito mais diversa do que é actualmente. A gente olha para fósseis de há 100 mil ou 200 mil anos e vê que são entre eles muito mais diferentes do que é um aborígene de um esquimó. Fósseis como o crânio da Aroeira e o esqueleto da criança do Lapedo demonstram que nós na actualidade somos anormalmente homogéneos, e isso tem a ver seguramente com a explosão populacional que aconteceu com as origens da agricultura há 10 mil anos, para não falar na revolução industrial. 

Qual diria que é o potencial da região que vai desde Torres Novas ao Vale do Paledo na Bacia do Lis para o progresso da arqueologia internacional?
Só posso falar pela parte que conheço, que é arqueologia paleolítica, a paleoantropologia, o estudo da evolução humana. Como estes exemplos demonstram, o potencial é enorme. Nós estamos a arranhar a superfície do que está aí para descobrir. E somos uma equipa pequena, com 30 anos disto, que é pouco comparado com 100 ou 150 anos de tradição de investigação na França, Alemanha e noutros países.

Faz sentido criar um museu ou é cedo?
Faria todo o sentido um museu de arqueologia da região centro, em Leiria ou Torres Novas, ou numa aldeia qualquer onde não houvesse problemas de rivalidade intermunicipal, porque há décadas de investigação e material para se fazer um excelente museu regional de arqueologia, sem dúvida nenhuma. Sei que há um museu em Leiria, não o conheço, não sei como está, mas, por exemplo, a partir desse núcleo fundador. Mas isso é política em que não posso nem me devo meter.

Tem sido possível estudar adequadamente os materiais recolhidos no Lapedo?
Sim, publicou-se uma monografia, houve trabalhos que tiveram que ser interrompidos, está agora a ser retomado o respectivo estudo, e é a tal história... se houver apoio... sem ovos não se podem fazer omoletes e as pessoas não podem trabalhar de graça. O que tem acontecido na última década é um desinvestimento, ao nível do aparelho de Estado, penso que a palavra correcta é destruição da administração do património cultural. E isso evidentemente tem consequências. As pessoas não se podem queixar e dizer não se estudou, não se publicou.

No caso do Lapedo também?
No caso do Lapedo também. 

Falta o quê?
Falta dinheiro, faltam postos de trabalho. As pessoas têm que ter um salário e não podem estar à espera que se arranjem uns dinheiros. Para trabalho competente tem que se ter profissionais e para se ter profissionais tem que se ter posto de trabalho e salário, na arqueologia como em qualquer outra profissão. E é isso que está a faltar.

Temos um achado importante, que se estudou e publicou, está musealizado, mas há muito a fazer?
Claro que há. Muitíssimo. Toda aquela zona é uma mina que está por explorar, o Vale do Lapedo e os vales parecidos que há na mesma zona.

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