Sociedade

Francisco Lontro: “O telemóvel cria-nos palas como aquelas que se colocam aos cavalos"

26 set 2019 00:00

ENTREVISTA | Fundador do projecto Brincar de Rua, considera que “se continuarmos a sobrecarregar as crianças com hiper-agendas”, definindo “todos os seus tempos, vamos torná-las adultos autómatos”.

Maria Anabela Silva

O que é que um projecto como o Brincar de Rua pode dizer de uma sociedade?
Há uns meses, cruzei-me com umas pessoas que tinham um folheto do Brincar de Rua e estavam a dizer que o projecto era ridículo. Apresentei-me e disse-lhes que concordava com elas. Mas, o ridículo é que cerca de 70% dos miúdos portugueses passem menos de uma hora ao ar livre, sendo Portugal o país mais seguro e com maior número de horas de sol da Europa e o terceiro mais seguro do mundo.

Além de, como diz, não fazer sentido, essa realidade tem consequências.
Tem consequências avassaladoras, relacionadas com o excesso de peso e as doenças que daí advêm, os problemas de falta autonomia e de competências pessoais e sociais, com a dificuldade na relação com os outros e na resolução de conflito. Chega a ser triste que tenha de haver um projecto como o Brincar de Rua, que procura inverter o sistema e fazer a promoção do brincar. O nosso desafio é chegarmos a uma determinada comunidade, ajudá-la a criar dinâmicas, para que, ao fim de algum tempo, já não sejamos necessários. O que nos propomos é criar condições para que os miúdos possam, naturalmente, ocupar e explorar o espaço da sua cidade, que venham brincar para rua, conhecendo novos amigos e até aprender a lidar com o seu próprio corpo e a enfrentar os desafios de viver em sociedade.

O medo dos pais é um obstáculo a essa vivência da cidade?
Sem dúvida. Os miúdos não brincam na rua, porque os pais não deixam. Qualquer pai, mentalmente saudável, protege a sua prole. É um comportamento natural. Fizemos um inquérito às famílias sobre as razões pelas quais os filhos não brincam mais na rua. E as principais razões apontadas prendem-se com a segurança rodoviária e o receio dos atropelamentos, o medo dos raptos e da violência vinda de adultos e o sentir que o filho não tem ferramentas para lidar com outros miúdos. As estatísticas mostram que os receios em torno da segurança não são baseados em factos concretos. Por exemplo, entre 2006 e 2017 houve uma redução de quase 50% no número de atropelamentos em Portugal. Em relação aos raptos sabemos que para as famílias do Rui Pedro, da Maddie e de outros meninos desaparecidos este é um flagelo brutal, mas a verdade é que os números relativos a este tipo de crime não são estatisticamente significativos. Estamos a restringir e transformar a vida das nossas crianças com base numa realidade cuja probabilidade de acontecer é muito diminuta. E, com isso, tiramos-lhes oportunidades de crescimento, de lidarem consigo próprias e com quem está à sua volta e de avaliarem situações de risco.

O que lhes vai acontecer quando crescerem e tiverem mesmo de ir para a rua?
Esse é que é o problema. Não têm ferramentas de crescimento, que os ajudem a lidar com as coisas boas da vida, mas também com os obstáculos. Não é um livro que lhes vai ensinar como enfrentar os desafios da vida, a serem capazes de ter uma ideia e de a concretizar e de, perante uma situação de confronto social, defenderem um ponto de vista. Há hoje a tendência de higienização da vida das crianças, que é um verdadeiro tiro no pé.

Como é que se pode ultrapassar essa realidade?
Além de mudar mentalidades, é preciso mudar a vida em comunidade. Num prédio de uma qualquer cidade o conhecimento entre quem lá vive não vai, na maioria dos casos, além de um 'bom dia' ou de um 'boa noite' ou das reuniões de condomínio. A perda do sentido de comunidade cria um vazio no espaço de rua. Perante o desconhecimento, o natural é evitar e proteger. Se não conheço as pessoas que estão à minha volta, não confio e meto-me, a mim e aos meus, dentro das seis paredes (tecto e chão, incluídos).  

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