Sociedade

E agora Pedrógão Grande?

22 jun 2017 00:00

Reportagem nas aldeias atingidas pelos incêndios, primeiro balanço dos prejuízos e perdas humanas e o contributo de especialistas para evitar nova tragédia

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Há uma coluna de fumo negro que se ergue no horizonte. Do lado de lá da encosta, onde as chamas comem tudo o que podem, fica a aldeia de Sobreiro. Estamos a meio da tarde de segunda- feira, dia 19, e as frentes de fogo continuam a eclodir no concelho de Pedrógão Grande.

As sirenes disparam, os Canadair rasgam os céus a baixa altitude e os bombeiros invadem a povoação com o objectivo de defender bens e pessoas. Algumas choram, ao verem as habitações ameaçadas e o fruto do trabalho na terra desaparecer em minutos.

As labaredas estão ali, a escassos metros. Hortas, pinhais, tudo arde no meio da confusão semeada vento fora. "Vamos ver se se safa alguma coisa", afirma Rodrigo Luís. O pai é madeireiro, a família depende da floresta.

"Vamos ter que aguentar, salvar as casas". Ali perto, Aduzinda Féteira, que acaba de regressar, vinda de Viana do Castelo, não consegue esconder a aflição, enquanto entra e sai da residência.

"Tenho uma horta aí em baixo que já deve estar queimada. Graças a Deus estão aqui os bombeiros, sinto-me um bocadinho mais segura. Isto é horrível". O grande incêndio de Pedrógão Grande, que só ontem, ao quinto dia, foi dominado, teve início no sábado, dia 17, pelas duas da tarde.

De acordo com a Polícia Judiciária (PJ), as portas do inferno abriram-se na povoação de Escalos Fundeiros, que fica escondida num pequeno vale no norte do concelho. Na origem do que veio a tornar- se o mais mortífero e violento fogo florestal em Portugal nas últimas décadas, segundo a PJ, esteve uma trovoada seca, que cortou ao meio uma árvore. Com temperaturas a rondar os 40 graus, humidades relativas muito baixas e ventos fortes, as chamas rapidamente galgaram quilómetros, apanhando populações inteiras desprevenidas.

Mas em Escalos Fundeiros nem todos acreditam na versão da Judiciária. "Não ouvi trovoada nenhuma", garante Maria Rosa Onofre, de 74 anos, que tem a sua própria teoria. "É mão criminosa, só pode ser".

O mesmo diz o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Sem confirmar a fonte de ignição para tantos dias e noites de sobressalto, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) reconhece que há registo de descargas eléctricas na zona de Pedrógão Grande no sábado. Alguns especialistas dizem que é necessário mais tempo para compreender o que aconteceu.

Falam em efeito chaminé, circunstâncias meteorológicas e dinâmicas geofísicas invulgares. E há sobreviventes que descrevem uma autêntica chuva de lume, com explosões e projecções. Num território de montes e vales cobertos de floresta e mato, o incêndio propagou-se a uma velocidade que terá surpreendido os próprios bombeiros e a Protecção Civil, além dos habitantes das aldeias de Fontainhas, Troviscais, Mosteiro, Salaborda Velha e Salaborda Nova, Vale da Nogueira, Casal de Além, Vila Facaia, Várzeas, Barraca da Boavista, Nodeirinho, Pobrais e tantas outras, atingidas no primeiro embate.

As mortes já confirmadas ocorreram na sua maioria, alegadamente, no sábado, de tarde e ao início da noite. Só Pobrais, Nodeirinho e Várzeas perderam, cada qual, mais de uma dezena de moradores.

Pelos piores motivos, a Nacional 236- 1 fica conhecida como "estrada da morte" – a lembrar os que ali soçobraram, encurralados nos carros pelas chamas, quando tentavam fugir. Nas horas de maior terror, os relatos apontam para um cenário dantesco: povoações cercadas e isoladas, sem ajuda dos bombeiros, fogo a surgir de todas as direcções, aldeias sem electricidade, água e comunicações, impossibilitadas de contactar com o exterior, inúmeras estradas cortadas, incluindo o IC 8, a principal via de atravessamento da região, famílias inteiras desfeitas, mortos e desaparecidos.

Ainda no sábado à noite, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a Ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, e o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, deslocaram- se para o epicentro dos acontecimentos.

Expuseram-se ao risco para chegar ao posto de comando instalado na zona industrial de Pedrógão Grande, não só porque faz parte da missão que lhes está confiada, mas também porque começavam a compreender a dimensão da catástrofe no terreno.

O Governo pediu esclarecimentos por alegadas quebras no sistema de comunicações do Estado (o Siresp) que ajudariam a explicar dificuldades no combate e na estratégia. Nos dias seguintes, o incêndio com origem nos Escalos Fundeiros, que chegou a ter quatro frentes activas, consumiu um território que inclui manchas dos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera, obrigando a evacuar mais aldeias.

Há centenas de desalojados. Nas áreas em rescaldo, sobra um imenso manto negro, pontuado por habitações ardidas, carcaças de carros, postes e cabos de electricidade tombados na estrada, eucaliptos e pinheiros sugados até ao chão e infra-estruturas reduzidas praticamente ao zero, que aos poucos começam a ser reparadas.

Elementos da GNR, Polícia Judiciária, Exército e Instituto de Medicina Legal fazem no terreno o levantamento, buscas e identificação das vítimas. Terça e quarta-feira, outro fogo florestal de grandes dimensões, a lavrar na zona de Góis, também ameaçou pessoas e bens.

E ao longo dos últimos dias os vários incêndios na região destruíram zonas de outros concelhos vizinhos, como Alvaiázere, Pampilhosa da Serra, Penela e Sertã. Três dias de luto nacional, para não esquecer as circunstâncias em que morreram 64 pessoas (incluindo crianças, famílias inteiras e um bombeiro de Castanheira de Pera ) e outras 180 ficaram feridas (sete em estado grave), de acordo com o balanço oficial à data de quarta-feira.

"O inferno de que falavam na igreja quando eu era pequeno foi vivido ontem", descreveu, no domingo, o presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Valdemar Alves. Um fogo ávido, cruel e descontrolado que invadiu tudo e todos.

Com uma área ardida equivalente a 30 mil campos de futebol, e os concelhos de Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, já antes penalizados pela desertificação e falta de oportunidades, praticamente reduzidos a cinzas, o grande incêndio de Escalos Fundeiros dá agora lugar à inevitável reconstrução da normalidade. Bem ou mal, a vida tem de continuar.

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