Sociedade

Da perda

1 out 2015 00:00

Crónica de uma viagem ao inferno no campo de refugiados de Opatovis

Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio
Foto cedida por João Porfírio

A semana passada viajei até à Croácia com amigos para entregar três camiões TIR carregados com mais de 60 toneladas de ajuda humanitária doada pela boa gente de Portugal. Leiria foi uma das cidades que liderou na recolha desta ajuda - mas isso já toda a gente sabe.

Ao todo, estimo que tenham chegado ao centro nacional onde recebemos ajudas de todo o País mais de 10 toneladas de donativos vindos de empresas e particulares da região de Leiria.


Soube bem fazer alguma coisa e estou muito grata a todas as pessoas que tornaram isso possível. Mas não chega. Se andarmos pelo facebook insuspeitamente a ver gatinhos, facilmente tropeçamos em páginas como o Humanos de Nova Iorque que, por estes dias,
resolveu dedicar os seus posts diários a relatar casos isolados de refugiados a que é impossível ficar indiferente.

São dramas deste calibre: “O meu marido e eu vendemos tudo o que tínhamos para podermos pagar a viagem. Trabalhámos 15 horas por dia na Turquia até termos o suficiente. O contrabandista pôs 152 pessoas num barco. Quando vimos o barco, muitos de nós quiseram voltar para trás mas ele disse que não reembolsava  ninguém. Não tivemos escolha. Tanto o porão como o convés estavam a abarrotar. As ondas começaram a entrar no barco e o capitão disse a toda a gente para atirar a bagagem ao mar. O barco bateu numa rocha mas o capitão disse-nos para não nos preocuparmos. A água começou a entrar mas ele disse-nos novamente que não nos preocupássemos. Nós estávamos no porão, que se começou a inundar. Estávamos demasiado apertados para nos mexermos. Toda a gente começou a gritar. Fomos os últimos a sair com vida. O meu marido puxou-me por uma janela. No mar, ele tirou o colete de salvação e deu-o a outra mulher. Nadámos até nos ser possível. Ao fim de algumas horas ele disse-me que estava demasiado cansada para nadar e ia tentar boiar, para descansar. Estava escuro, não conseguíamos ver. As ondas eram grandes. Eu conseguia ouvi-lo chamar-me, cada vez mais ao longe. Eventualmente, um barco encontrou-me. Nunca encontraram o meu marido”.


Não é preciso ter ido à região para saber que o problema está longe de estar resolvido. Lá ter ido apenas o torna impossível de esquecer. Visitei um campo de refugiados num sítio
chamado Opatovic, que estava a rebentar pelas costuras de gente como esta mulher, que
perdeu tudo o que tinha construído: a casa, o emprego, as posses, o país.

Em muitos casos, a dignidade e a família. Vi crianças sozinhas, aflitas, chorosas, sem um pai ou uma mãe por perto para lhes limpar o ranho. Maridos que percorriam a multidão com os olhos, incessantemente, a tentar reconhecer o perfil da mulher. Irmãos a acenar um ao outro, enquanto o autocarro em que um deles seguia se afastava, sem ninguém saber para que fronteira.

Emprestei o telemóvel a um homem perdido do grupo de amigos com que viajava que, ironicamente, se tinha autodenominado Titanic. Tento pôr-me no lugar desta gente que está a chegar às fronteiras da Europa às dezenas de milhar, fugida de países em guerra, sem hospitais e escolas para os filhos, sem segurança e liberdade para viver uma vida decente.

Sentei-me do lado de fora das redes deste campo onde os “arrumaram” até chegarem os próximos autocarros e tentei imaginar o cansaço de caminhar há dias sem fim, passar noites ao relento com chuva e frio e dias à torreira do sol, parados, em filas controladas por
polícias que procuram manter a calma onde há muito tudo deixou de fazer sentido. Tento
imaginar o desespero de ninguém os querer, a desorientação e o pânico de não saberem que perigos vão encontrar na próxima curva da estrada, mesmo quando se cruzam com
voluntários que lhes oferecem uma muda de roupa, um brinquedo para distrair os miúdos ou uma palavra de conforto. Não consigo. Não tenho referencial possível para me pôr no lugar deles.


Não sei que cicatrizes isto lhes vai deixar na alma, nem como se volta de um horror assim.
Ultimamente dou por mim a repetir mil vezes, como um mantra, como um desejo mais forte que tudo, que enquanto os políticos desta Europa adiam decisões como quem adia um
branqueamento dentário e vão ali comer mais uns mexilhões a Bruxelas, estas pessoas não percam, para além de tudo o que já perderam, a coragem.

Maria Miguel Ferreira