Sociedade

António Olaio: “irrita-me a irreverência ser uma tradição”

7 fev 2019 00:00

Entrevista | O artista plástico fala da concepção da arte, das possibilidades e importância da mensagem, aborda o papel do público na criação da obra, assim como o tecido de que se faz a sociedade

Jacinto Silva Duro

O que retrata a exposição Next Stop is Yesterday, que está patente na Galeria Municipal Banco de Portugal, em Leiria?
São telas, vídeos e desenhos e o título reflecte uma ideia de percurso aparentemente pessimista. Quando a próxima paragem é ontem, é pior do que não haver futuro, não é? Mas não é de todo, se não virmos o “ontem”, pelo aspecto negativo. É uma espécie de saudade? Além da tentação e da estranheza da ideia inicial, é uma forma de sintetizar aquilo que penso que a arte é. É uma relação com as coisas, através da arte, que não tem a ver com uma sequência temporal. Não há coisas que substituem outras, não há artistas que avançaram mais na arte do que outros. Uma experiência de uma obra de arte contemporânea, não é superior a outra com uma obra de arte com 400 anos. Hoje, as questões continuam tão pouco resolvidas como o eram na época. As interrogações permanecem. 


Há pouco tempo, afirmou que, profissionalmente, era um "técnico de estímulos".
É essa a função do artista? Nem sempre é tido em consideração o facto de os artistas "fazerem coisas". Mas, em qualquer outra actividade, "fazer coisas" leva a que o público se aperceba delas e para aquilo que elas trazem. Na arte, a tendência é olhar-se para o artista. Sendo um "técnico de estímulos" sou uma pessoa que “faz uma coisa”, tal como faz um médico ou um ortopedista. O artista cria situações e jogos potencialmente estimulantes. Acho pouco interessante tentar aprofundar uma obra para a deslindar como um enigma policial. Uma obra de arte, ao mesmo tempo que é uma coisa só, é um abrir de possibilidades.

Potenciando as noções de significante e significado?
Possivelmente, nada mais há a não ser significantes, em toda a realidade. Quando expressamos um significado, estamos a produzir significantes, porque até um lápis é um conjunto de muitas coisas, que resultaram numa concepção estabilizada. Uma pintura é um conjunto de muitas coisas que não resultam na ideia de nada em específico, porque isso não é importante. Os artistas fazem coisas que não existiam antes, mas após as terem feito, continuam a criar.

É por isto que aparece o seu interesse por Duchamps?
É um interesse que tem a vantagem de não ser original. Duchamps é, talvez, o artista mais influente na arte de mostrar que um artista não é um modelo a seguir. A obra dele tem uma espécie de conforto por nos libertar de constrangimentos e fazer perceber que o artista é dono do seu próprio trabalho. Não era um artista moderno, mas era, ao mesmo tempo, moderno. É visto como um artista de ruptura e transgressão... por exemplo, mais do que uma vez, aparece a referir-se a Adão e Eva. Ou quando aborda o que se perdeu com a arte moderna, quando fala da pintura dos salões. É um artista que vive o seu tempo e está, simultaneamente, fora dele. Jamais embarcou na ideia de anunciar a próxima coisa que irá substituir a anterior.
 

Perfil
Artista plástico, músico e performer

António Olaio nasceu em 1963, em Sá da Bandeira, Angola. O artista plástico, músico e performer vive em Coimbra, onde, actualmente, é professor no Curso de Arquitectura e no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.

É investigador do Centro de Estudos Sociais e, das suas publicações, salientam-se os livros I think differently, now that I can paint e Ser um indivíduo chez Marcel Duchamp.

No final dos anos 80 e início dos 90, do século passado foi o vocalista da banda Repórter Estrábico, um dos marcos da música moderna portuguesa.

É um dos grandes nomes da pintura e performance da actualidade e conta com uma exposição - Next Stop is Yesterday - patente na Galeria Municipal Banco de Portugal, em Leiria, até ao dia 13 de Abril.

 

E, na sua obra, qual é o papel do humor?
É comum associar o meu trabalho ao humor e percebe-se porquê, embora não seja algo que procure. A possibilidade de o associar ao humor é, talvez, por ter características que o humor também tem. Rimo-nos por variadas coisas. Rimo-nos porque algo está fora do sítio, rimo-nos de coisas das quais, muitas vezes, não deveríamos rir. O humor consegue provocar uma reacção e percepção tão rápidas que as pessoas não têm tempo de pensar no que estavam a pensar. Para mim, é um jogo... Ou é por eu não gostar, ostensivamente, de me levar muito a sério. Evita que a percepção de obra de arte ou a experiência estética pare na pura admiração por algo insondável e inatingível. E, ao mesmo tempo, deixa que a obra seja permeável a todas as coisas que existem.

O seu humor está voltado para a sociedade? Para a crítica?
Não há crítica, de forma dirigida. Existe, genericamente, e não sei se será propriamente crítica, mas questiono a imagem que temos de nós mesmos, e revitalizar a relação com as coisas. Se desestabilizarmos a ideia que temos das coisas, percebemos que, uma coisa é o que nos habituamos a dizer e aquilo que pensamos. Não há um foco num tempo e numa situação específicos. Pelo contrário. As obras estão sempre abertas a interpretações, mas há uma dimensão ética muito grande num obra de arte e essa dimensão não tem obrigatoriamente que ver com esta ou com aquela injustiça, com este ou aquele conceito. É a manifestação de que todos temos consciência do ser humano, mas os artistas fazem disso trabalho. Há pouco, estive num encontro para falar de arte no Rio de Janeiro e estava lá um professor universitário índio. Ninguém falou de arte, mas dos problemas relativos aos direitos humanos e, em especial, aos das populações índias. São questões mais urgentes e importantes. Um artista, quando faz uma obra, põe as coisas em jogo, não está a demonstrar uma opinião.

A sua voz é parte integrante da exposição de pintura em Leiria. Optou pela multidicisplinariedade?
Há um vídeo com música, a partir das canções que tenho com o João Taborda. Iniciei-me na música há muitos anos, ainda com os Repórter Estrábico, por achar interessante o deslocamento. Era artista e cantava. A primeira coisa foi dançar, sempre no mesmo sítio e, daí a cantar, foi só um passo. Tudo batia certo, era interessante e deu-me força anímica para o continuar a fazer. Saí da banda em 1991 e, desde 1996, faço concertos com o João. Não fazemos muitos, mas estamos a gravar agora um novo disco. Temos tocado em sítios interessantes e também no contexto das artes plásticas. A motivação é este jogo que faço com as artes plásticas; não sei se é ironia ou afirmação. As letras das canções são como um discurso sobre arte, têm rima e discurso, e não se pode prescindir dessa plasticidade. Como performance são a manifestação de uma maneira de estar na arte. Aparentemente, estou-me nas tintas em relação ao que possam dizer sobre o meu trabalho, mas não estou nada nas tintas. A presença física do artista afronta também a ideia de que o artista aparece legitimado. Para mim, nunca foi um problema a pintura versus performance.

É professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Coimbra, os alunos chegam bem preparados ao curso?
Não tenho uma ideia genérica sobre isso. A minha geração está cada vez mais afastada dos alunos. Quando comecei a dar aulas, ainda estava na casa dos 20 anos e estava mais próximos deles. Os alunos de arquitectura, eram os que ouviam boa música, organizavam exposições e eram os que eu encontrava, quando ia ao cinema. Agora, vão criar uma tuna e isso até dá pesadelos! Porém, se não houvesse estas tradições estudantis, também seria chato… mas uma das coisas que na universidade me irritam é a “irreverência por tradição”. É super reverente a boçalidade que é esperada dos estudantes. É absolutamente reverente aquela irreverência postiça, que se cumpre porque são jovens. Mas, nem todos os alunos são

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