Sociedade

Annarella Sanchéz: “O povo português tem um talento natural para a dança”

11 mai 2017 00:00

A responsável pela Annarella Academia de Ballet e Dança, de Leiria, acredita que é possível criar “uma grande companhia de ballet”, na cidade do Lis, capaz de se apresentar em Nova Iorque ou México.

annarella-sanchez-o-povo-portugues-tem-um-talento-natural-para-a-danca-6432
Jacinto Silva Duro

A professora de ballet acredita que a dança clássica começa a ser apreciada em Portugal
e não esconde que gostaria de abrir uma companhia em Leiria, destinada a divulgar o ballet português.

O que faz da Annarella um exemplo de sucesso no mundo da dança? O que diferencia a sua academia?
Há quatro anos, começámos a apostar em apresentar o nosso trabalho no estrangeiro. Recebi um convite para dar algumas aulas durante o Verão, nos E.U.A., e a escola começou a ser um pouco mais conhecida. Nessa ocasião começámos a dar aulas diárias de ballet e fizemos uma divisão interna entre academia e conservatório. Criámos o Conservatório Internacional destinado às crianças que não querem a dança só como actividade lúdica. A partir daí, começámos a ir a competições, sobretudo para o Youth America Grand Prix (YAGP), que, embora seja nos Estados Unidos, tem um júri composto por professores e especialistas de dança de várias partes do mundo, em especial da Ópera de Paris e do Bolshoi, da Rússia. Quando participámos pela primeira vez nesta grande competição, que tem a grande final em Nova Iorque, os jurados russos ficaram impressionados com a qualidade do que tínhamos apresentado. Penso que a Academia Annarella começou a ser conhecida internacionalmente a partir daí. Os resultados devem-se ao facto de os nossos bailarinos terem aulas de dança todos os dias com os professores da escola e com docentes convidados. Tentamos trazer os melhores do mundo a Leiria. Isto é, convidamos professores de bailarinos reconhecidos internacionalmente.

A Academia Annarela foi a primeira escola portuguesa a participar no YAGP?
Há mais escolas. Participámos pela primeira vez na semi-final em Paris, em 2012, e fomos a Nova Iorque em 2013. Na época, já havia outras escolas a participar e até o ex-director do Conservatório Nacional, Pedro Carneiro, fazia parte dos jurados. Tivemos uma boa estreia e colocámos no Top 12 das Melhores Coreografias todas as coreografias que levámos. Na primeira vez que fomos a Paris, alcançámos o segundo lugar europeu e depois passámos para o primeiro, até alcançarmos o Grand Prix, na Europa. Nestes quatro anos, conquistámos todos os prémios que são sonhados por uma escola que participa nesta competição. Da primeira vez que fui aos E.U.A., comecei a ver quais eram as melhores escolas. Analisei o trabalho dos japoneses e dos russos e percebi que podíamos chegar ao mesmo ponto que eles e até fazer melhor porque temos uma qualidade de vida melhor, em Portugal, do que a que eles têm. É tudo mais tranquilo, as crianças podem concentrar-se mais. Disse aos nossos alunos que não eram menos do que os japoneses, franceses, espanhóis ou russos e que se trabalhassem como eles, os resultados seriam iguais ou superiores. Portugal é como ir de férias a um lugar onde há muitos bons hotéis de uma ou duas estrelas e, de repente, quando chegamos, vemos que também há um de cinco estrelas, excepcional e que supera a boa oferta dos outros. Ou seja, tentei fazer da Academia Annarella um “hotel de cinco estrelas”. Juntei os pais e expliquei-lhes que se íamos viajar para os Estados Unidos, Paris ou outro local, a experiência seria muito boa, mas seria cara. E já que íamos, tentaríamos retirar algo de produtivo e que os alunos ganhassem alguma coisa, porque via neles esse potencial.

As crianças portuguesas são talentosas?
São e aprendem muito rapidamente. Quando cá vêm os professores norte-americanos ou russos, perguntam- me a razão pela qual os meus alunos são diferentes. A razão do brilho nos olhos, da concentração... Penso que é por causa do talento natural do povo português para a dança. Mas é uma vocação que tem de ser trabalhada e é preciso saber fazê-lo. O YAGP aprecia o facto de termos grupos no nosso conservatório com aulas diárias de ballet, de pontas, de contemporâneo e as coreografias de grupo. Estas últimas, para mim, são as mais importantes porque a escola é um grupo. No resto do mundo, todos querem ser solistas e o “Ronaldo do ballet”. Hoje, nas escolas dos E.U.A., pratica-se muito as aulas particulares e os alunos já não se apresentam como grupo.

Como se faz o equilíbrio entre a escola e uma disciplina exigente como a dança?
Quando há quatro anos começámos esta nova aposta foi muito difícil. Tive de ir falar com os directores dos vários estabelecimentos de ensino e com os directores de turma para lhes explicar que, para chegar ao grau de excelência, precisávamos de algum apoio. As crianças que fazem ballet são muito boas academicamente e muito organizadas, porque a dança lhes ensina a sê-lo. O director da Escola Afonso Lopes Vieira (ESALV), Pedro Biscaia, foi o primeiro a abrir-nos as portas e a tentar ajudar. Os alunos do 7.º ano de escolaridade, que queriam aprender ballet, começaram a inscrever-se na ESALV, até que foi possível formar turmas apenas com eles. No ano passado, fui procurar uma escola para os alunos dos 5.º e 6.º anos. Consegui encontrar uma escola, a Correia Mateus, que tinha facilidade em criar horários com tardes livres. Falámos com o director e com os professores e tentámos convencê-los e explicar-lhes as nossas necessidades. Os docentes de Educação Física acabaram por ir à Academia ver o que fazemos. Há muitas escolas de dança em Leiria, é certo, e estes docentes tinham de perceber que esta não é uma prática de dança normal, mas que era um conservatório que se estava a formar e que tínhamos alunos a vir do Brasil, de França, da Argentina e de Espanha, e que tinham de estudar nas escolas públicas, sem deixarem de se focar no ballet. Não são jovens que andam na dança apenas no final do dia. Têm um programa curricular próprio. Durante toda a semana e aos sábados também. Actualmente, temos um apoio grande dos estabelecimentos de ensino.

A dança continua a ser "uma coisa de meninas", como muitos acreditam?
Já foi mais difícil encontrar rapazes interessados na dança. Agora, temos meninos que vêm do norte e do sul do País. Temos até rapazes do Porto, que só cá vêm ao sábado. Isto porque a escola cubana é reconhecida pela técnica masculina. E nós fizemos um intercâmbio com a Escola Cubana de Ballet. Eles mandam- nos professores, especialistas em técnica masculina, que nos ajudam na formação. Os alunos aperceberam- se que a maioria dos bailarinos mais conhecidos nas grandes companhias são cubanos e vêm aprender as técnicas da escola cubana. A nossa presença na televisão, em programas como o Got Talent, onde o nosso bailarino António Casalinho se apresenta como um "bailarino clássico", também tem levado a que os pais tragam os filhos. Ao ser escolhido para a final do concurso, o António tornou-se num símbolo português do ballet clássico e outros meninos também passaram a admirar o ballet.

A participação em concursos, como o Got Talent na RTP, um concurso destinado às massas, tem o potencial de promover a dança? Levar a participar bailarinos com a qualidade do António, da Margarida e do João foi uma boa aposta?
Sim, promove. Noto isso aqui e noutros países. O director do YAGP disse-me que os professores nos E.U.A. mostram os vídeos do António, que foi vencedor três vezes seguidas no YAGP, para os rapazes trabalharem. O facto de eles terem aparecido no Got Talent foi importante para tentar que a dança se apresente como algo de grande qualidade. Levá-los ao concurso não lhes retirou brilho. Portugal é um paraíso, mas é um paraíso que viveu muitos anos sob uma ditadura, onde as pessoas não eram alfabetizadas e, muito menos, tinham contacto com a arte. Ver ballet em Portugal, não é como fazê-lo em França ou Rússia, onde o público No resto do mundo, todos querem ser solistas e o “Ronaldo do ballet” Em destaque está habituado desde pequeno. Em Portugal, normalmente, tudo o que se apresenta de dança na televisão é de muito má qualidade. Antes de ele ter participado no Got Talent em Portugal, já tinha sido desafiado a participar em Los Angeles, nos E.U.A., e em França. Recusámos, mas aceitámos o desafio do programa em Portugal. A produção andava à procura de talentos com qualidade e quando veio cá, por sugestão da produção de Los Angeles, ficou impressionada. Sabiam que era bom, mas não sabiam que ele era tão talentoso. Quando falei com os pais dele, expliquei-lhes que era a oportunidade de mostrar que temos qualidade na dança. Ele não participou para ganhar, fê-lo para mostrar a qualidade, pois não tem a ambição de apenas aparecer na televisão. A imagem que tenho da televisão portuguesa vem-me de quando cheguei pela primeira vez a Portugal, em 1998, e só dava o Big Show SIC, quando chegava a casa de dar aulas. Era aquele homem aos gritos, um macaco e mulheres de tanga... achava aquilo de muito mau gosto. Mas desta vez, está a correr tudo bem. As pessoas admiram o António, percebem o que é e a qualidade que a dança clássica tem em Portugal.

Estes jovens têm muita pressão para serem os melhores. Como se lida com a vontade desmesurada de vencer?
Sempre lhes disse que não podem pensar que são os melhores mas que têm de trabalhar muito e, no final, mesmo que não consigam vencer, aprenderam algo. Quando cá chegam bailarinas norte-americanas para os cursos de Verão, as nossas acham sempre que elas são melhores e eu tenho de lhes explicar que devem ser humildes, mas que, em palco, têm de mostrar o que valem, porque são tão boas como as estrangeiras. Quando os nossos bailarinos vão às competições, não o fazem para ganhar. Estão tão envolvidos e focados nas coreografias e sentem tanto prazer em dançar, que se esquecem de ser competitivos… mas ganham.

Leia mais na edição impressa ou torne-se assinante para aceder à versão digital integral deste artigo.