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A ‘mercearia do ti Carlos’ está de volta

29 out 2020 10:32

Mercearias do tempo dos avós estão de volta com aposta em produtos nacionais de qualidade

Rui Silva quis recriar, na Mercearia Santana, em Leiria, 'a saudade de Portugal', em Portugal”
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Ricardo Graça
Ângela Pinto e Marta Araújo apostam na economia circular e a granel de produtos saudáveis, na Tudo a Granel, em Leiria
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Ana Paula Reis abriu A Taverna do Merceeiro, em Fátima, há quatro anos e está a mudar para um espaço maior
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DR
Rui da Bernarda e a sua Mercearia Pena, de Caldas da Rainha, que, aos 111 anos, se estabeleceu como um dos sinónimos de “mercearia portuguesa”
Rui da Bernarda e a sua Mercearia Pena, de Caldas da Rainha, que, aos 111 anos, se estabeleceu como um dos sinónimos de “mercearia portuguesa”
Ricardo Graça/Arquivo
Rafael Mesquita criou o Rapaz dos Recados durante a pandemia e avança agora para o Ateliê do Rapaz
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Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

Tendência | As mercearias tradicionais regressaram à paisagem urbana com as suas balanças de pratos e produtos tradicionais, conservados em grandes armários que se perdem nas alturas do tecto, para serem vendidos a granel e avulso. Evocativos de uma tradição e de um certo gosto pela vida, ganharam um nicho de mercado onde conseguem concorrer contra as grandes cadeias de lojas.

Nas décadas de 80 e 90 do século XX, as mercearias tradicionais estavam em extinção, esmagadas pelo todo poderoso consumo em massa no hipermercado.

Hoje, os pequenos estabelecimentos onde podemos encontrar marcas de café e de chocolate do tempo dos nossos avós, ao lado de queijos da serra e do bacalhau, servidos por cima de um balcão a cheirar a especiarias e a açúcar amarelo, são um sinal de bom gosto,orgulho pela tradição e regressaram para ficar.

Cansado da cultura do descartável e de produtos de mercearia que mais parecem saídos da central de processamento de um restaurante de fast food, o público sente a nostalgia dos laços perdidos com a comunidade. Vínculos que se estabeleciam em conversas quotidianas na ‘venda do ti Carlos ou da ti Maria’, sobre o tempo, sobre a vida alheia ou sobre a espessura aconselhada para o bacalhau da Consoada – “três dedos, pelo menos!”.

As mercearias “à antiga”desapareceram quase todas, mas as que persistiram abriram caminho para que gerações mais novas ajudassem a perpetuar estes sinais de vida comunitária com a abertura de novas “velhas mercearias”. Por estes dias, encontramos a Taverna do Merceeiro (e mercearia gourmet), na Rua João Paulo II, a dois passos do Santuário em Fátima,de portas fechadas.

Mas, lá dentro, a azáfama é grande. É preciso mudar o mobiliário, o equipamento e os produtos armazenados para a nova e maior “Taverna”, na Avenida Dom José Alves Correia da Silva, que deverá abrir portas em Dezembro.

Quando, há quatro anos, Ana Paula Reis investiu num negócio na terra da família estava longe de sonhar que o sucesso da mercearia, que é também restaurante, a obrigaria a expandir o negócio tão rapidamente. As memórias dos tempos passados com os avós na aldeia de Boleiros, nos arredores da cidade, fizeram-na sentir a necessidade de levar de volta algo que era, simultaneamente, novo e antigo, acolhedor e genuíno.

Na verdade, entrar na Taverna do Merceeiro é fazer uma viagem no tempo, a uma época onde as prateleiras se enchiam de embalagens de conservas de sardinhas e atum, caixas verdes e azuis da Farinha 33,“recomendada a adolescentes, desportistas e adultos cujo trabalho obrigue a grandes esforços físicos”, com sabor a chocolate e fabricada pela Avianense, de bolachas de baunilha,em pacotinhos ou avulso, e até de máquinas de furinhos dos chocolates Regina.

“Queria preservar um património imaterial que é colectivo. Muitas crianças aparecem com os pais, que lhes mostram aquilo que compravam no ‘seu tempo’”, conta a proprietária, 39 anos e formada na área financeira. A atmosfera do espaço foi recriada de acordo com a sua memória das idas à mercearia na companhia dos avós, para se aviarem de cartuchos de colorau, açúcar, farinha ou rebuçados.

“Quis homenagear o que se vai perdendo”,resume Ana Paula. Espaços como o seu, entende, são mais tendência do que moda. Vieram para ficar, tal como os brunches e refeições vegetarianas que serve ao lado de iguarias mais tradicionais. “O conceito é para durar."

Com a chegada das grandes superfícies ao mercado, as pequenas vendas da aldeia e as mercearias de bairro foram sendo asfixiadas. Novas regras apertaram o garrote à venda a peso ou avulso e muitas marcas desapareceram da vista. Mas perseveraram.

“Deixámos de ver os produtos tradicionais por culpa do canal Horeca (canal de venda para o retalho,para hotéis, restaurantes e café). Passámos a consumir apenas o que nos colocam à frente. Os produtores, grossistas e cash&carry continuam a ter muitos dos produtos tradicionais,mas há menos procura”, explica.

Um dos produtos com maior saída,durante todo o ano, mas com maior expressão na época natalícia,são os Cabazes do Senhor Merceeiro. Os clientes escolhem ou aceitam sugestões de produtos do “senhor Merceeiro” e o resultado é uma oferta única. 

Daqui a 111 anos, Pena continuará ser sinónimo de mercearia
Aos 111 anos, a Mercearia Pena é, provavelmente, uma das mais antigas a operar em Portugal. Chegados a Caldas da Rainha e percorrida a Rua dos Heróis da Grande Guerra até à encruzilhada com a Travessa 5 de Outubro, franqueamos as portas de um edifício em tons de rosa e, lá dentro, o aroma forte a café aviva memórias esquecidas de pequenos-almoços e lanches servidos com pão quente e acompanhados por manteiga e café da avó.

Na Pena há bacalhau, há bolos secos de delicado sabor a limão que dão pelo nome de “lagartos”, há frutos secos, há queijos de todo o País (Serra, Açores, Alentejo, Beiras), há avulso e há lá de tudo, como na… mercearia. “Há o que de melhor se faz em Portugal”, diz, orgulhoso, o responsável, Rui da Bernarda. Esta loja é um estudo de caso.

Nela encontramos não apenas produtos diferentes, mas também produtos diferenciados por assentarem em marca própria e qualidade. Nas prateleiras, assegura o gerente, apenas há espaço para o que é tradicional e, simultaneamente, “qualitativamente superior ao que existe no mercado”. A aposta numa marca própria de café, por exemplo, levou a que a Pena forneça lotes expresso, d’avó ou descafeinado para restaurantes e cafetarias.

A mercearia cunha, igualmente, a sua imagem nos bolos secos, em doces das Caldas (cavacas, beijinhos e broas), em compotas e está até a reavivar receitas conventuais e a levá-las para o mercado, além de ter adquirido uma unidade de fabrico de doces e salgados. Tudo somado, a mercearia facturou 500 mil euros em 2019.

Em 1997, a Pena mudou de gerência, mas apenas em 2007, após uma remodelação, se começou a traçar a presença actual da marca. Em 2009, com o centenário, a nova fase explodiu. O estabelecimento tornou-se num ícone. Numa verdadeira imagem de marca de uma tendência que, há já algum tempo, se vinha afirmando.

Hoje, é reconhecida por muitos portugueses de todo o País. Embora boa parte dos clientes continue a preferir o ambiente acolhedor e perfumado da loja física, a pandemia veio trazer um ligeiro acréscimo no negócio online e um crescimento muito mais marcado nas entregas em todo o território nacional.

“Muitas pessoas ligam, fazem as encomendas e a Pena entrega. Se for no concelho das Caldas, é gratuito.” Estender o conceito da Pena a outros pontos de Portugal? “É uma ideia com pernas para andar”, diz Rui da Bernarda, embora, cauteloso, sustente que, devido ao panorama actual de pandemia e indefinição económica, não haja um prazo ou plano para essa expansão.

“Os passos têm de ser seguros, para que, daqui a 111 anos, a Pena ainda cá ande.”

Recriar a saudade de Portugal em Portugal
A mercearia de bairro que vemos n’O Pátio das Cantigas, na versão original do filme com Vasco Santana, António Silva e Ribeirinho, poderia ter sido inspiração para a criação da Mercearia Santana, de Leiria, uma vez que Rui Silva, o gerente, é fã dessa filmografia. Em cada balcão e prateleira há aromas, texturas e sentimentos.

Há bacalhau, queijo, azeite, bolachas, compotas, pão, mel ou infusões de marcas há muito esquecidas, mas evocativas de um Portugal onde a qualidade era mais importante do que a quantidade e onde o peso económico das grandes marcas ainda não obliterava os pequenos produtores. A mercearia nasceu de uma conversa entre Rui e a mulher, Andreia.

Constataram que, no centro de Leiria, havia deixado de haver lojas de alimentação, à excepção de duas mercearias antigas. A restante oferta encerrara e a que existia não permitia uma oferta de proximidade.

“Havia espaço para montar uma mercearia e recriar um espaço onde se poderia comprar um chocolate de uma marca antiga, como o Táxi, e outras que viviam nas nossas recordações de infância”, conta. Profissionalmente ligado ao sector agro-alimentar desde 2013, Rui Silva trabalhou os mercados internacionais em várias empresas da região, actividade que ainda mantém, mas, agora, em nome próprio, através da empresa de outsourcing que fundou em 2018, a Profoods Solutions, pelo que tinha já experiência na área.

O objectivo de ambos não era criar um espaço gourmet, mas um onde houvesse produtos portugueses de qualidade, como a pasta medicinal Couto, frutos secos ou azeite, e que proporcionassem uma viagem ao passado. Mas não só. Se no estrangeiro, nas comunidades, se vendem muitos produtos ligados à saudade, “porque não recriar essa saudade em Portugal?”

Para o projecto, o casal acabou por se inspirar nos melhores exemplos de mercearias tradicionais, como a Manteigaria Silva, em Lisboa, ou a Pena, de Caldas da Rainha. Em Leiria, o espaço conta comum a pequena esplanada onde o cliente degusta os produtos, como queijo fresco ou curado, adquiridos a peso e acompanhados por um copo de vinho.

No final, pode sair da mercearia com um cabaz de artigos tradicionais,para si ou para oferecer. A Mercearia Santana foi encarada como um projecto familiar, que reuniu Rui, Andreia e os dois filhos, Lara e João Diogo, durante boa parte da pandemia.

O espaço demorou cerca de um ano a ficar de pé e esteve mesmo para não se concretizar. A meio de 2019, o casal soube que a loja no Mercado de Sant’Ana iria a hasta pública e foi o primeiro a licitar, mas houve uma oferta superior que venceu.“A vencedora acabou por desistir e os astros alinharam-se”, recorda o responsável.

A maior dificuldade que sentiram acabou por ser a busca pela decoração correcta. Como decorar “com chave na mão”era demasiado caro para o orçamento, Rui e Andreia calcorrearam as feiras de velharias, em busca da decoração mais próxima possível à da época.

Regatearam e perderam-se em longas conversas com os vendedores sobre as histórias de origem dos artigos que, depois, com os filhos, lixaram e pintaram, antes de os colocarem no espaço. O balcão da padaria,por exemplo, foi salvo de uma obra em Óbidos, resgatado do meio de cimento e entulho. Já a bicicleta é uma réplica daquela com que o avô de Rui pedalava para ir ao mercado.

A inauguração da Mercearia Santana aconteceu no dia 4 de Outubro e a resposta e procura dos clientes, entende o responsável, tem sido positiva. 

Economia circular e a granel
O negócio de Ângela Pinto e Marta Araújo é o granel. Sejam especiarias, leguminosas, alimentos desidratados, chá e infusões, manteiga, ervas aromáticas, champô sólido, bolachas ou detergente, tudo é ecológico, vendido ao peso e de origem local ou nacional. Ambas naturais de Leiria, a primeira é formada em Serviço Social e a segunda em Psicologia e são aficionadas pela área alimentar.

Há dois anos, as amigas resolveram avançar para a Tudo a Granel, após beberem inspiração noutros estabelecimentos semelhantes, especialmente na Maria Granel, em Lisboa. Numa das paredes da loja, no topo da Avenida Marquês de Pombal, em Leiria, pode ler-se “0% de desperdício+alimentação equilibrada=consumo responsável”.

É uma filosofia de economia circular que, até nas embalagens,se pode verificar. Os clientes são incentivados a trazer de casa frascos ou sacos para reduzir o consumo do plástico ao mínimo. Se não tiver um saco, a loja vende sacas de pano para levar as compras, tal como no tempo das avós.

Sabonetes das Serras de Aire e Candeeiros? Escovas de dentes de bambu e pasta em embalagem de vidro reutilizável? Também há. Bolachas de alfazema e limão? Biscoitos de azeite e mel? “Estão no balcão aí do lado.”

“Os alimentos que vendemos são o mais naturais possível, sem sal, nem aditivos”, diz Ângela Pinto. A loja abriu há um ano e já conta com clientes(muito) fidelizados. “Sentimos que vimos resolver uma necessidade de um público que se tornou mais responsável para as questões do desperdício,alimentação saudável e impacto ambiental.

O primeiro ano de actividade tem sido de crescimento e de aprendizagem.”

Um dos problemas que tiveram de ultrapassar foi a busca por fornecedores e quantidades. Conseguiram estabelecer contactos com fornecedores fixos mas, ainda hoje, sentem algumas dificuldades com produtos mais difíceis de encontrar. 

Mercearia de bairro e loja de conveniência
Saiu tarde do trabalho, esqueceu-se de ir às compras e, para piorar, o hipermercado já fechou e acabaram-se as fraldas do bebé, a areia do gato ou os croquetes do cão? Nada tema! Ou melhor, nada tema se viver em Leiria. A Mercearia Altas Horas, que alia o conceito de loja de bairro e loja de conveniência,poderá ser a solução.

Adinelza Zacarias reparou que muita gente, em especial os funcionários do Hospital de Santo André, localizado perto da sua mercearia, tinham horários loucos e viu uma oportunidade de negócio. Conhecia lojas abertas toda a noite em Lisboa e decidiu importar o modelo para Leiria.“A loja costumava estar aberta 24 horas por dias, mas agora, devido à pandemia só podemos trabalhar até às 00 horas. Depois disso, fazemos entregas ao domicílio”, refere.

Leite, comida para animais, tabaco e mercearias são apenas alguns dos produtos que a dona da mercearia e os dois colaboradores costumam levar a casa dos clientes. Mas há mais. “Basicamente, tudo o que se encontra numa mercearia de bairro.”

Rapaz dos Recados envia produtos regionais para todo o País

O Rapaz dos Recados é de Leiria e chama-se Rafael Mesquita. Pegou numa velha ideia associada ao conceito de mercearia tradicional e transformou-a num negócio; o Rafael faz recados.

Ou melhor, presta “um serviço personalizado de recados”.

“Vou às compras, levanto encomendas, vou à farmácia e até já fui buscar castanhas à senhora das castanhas no centro de Leiria.” A pandemia,que penalizou muitos sectores da actividade económica, deu um impulso a uma ideia de negócio em que Rafael tinha começado a trabalhar em Novembro do ano passado.

Com a suspensão de actividades, o treinador de futsal fintou a pandemia, agarrou com as duas mãos a oportunidade e, em Março, dois meses antes do previsto, saiu para a rua a fazer recados. Trabalha sem agendamento nem plataforma online, prefere o contacto telefónico directo e até dá sugestões de encomendas.

Neste momento, emprega mais duas pessoas e vai abrir mais um serviço, no dia 2, a que deu o nome de Ateliê do Rapaz. Sediado na Gândara, Leiria, fornecerá caixas com gifts surpresa para todo o País, centralizando tudo numa plataforma online.

As caixas conterão produtos de qualidade e 100% nacionais, muitos deles da região.

“Haverá, por exemplo, gin artesanal das Serras de Aire e Candeeiros,infusões com história, azeite aromatizado Pintarroxo, paté José Gourmet, enchidos de porco preto Absoluto, queijos envelhecidos em azeite Cardo Senhora do Monte [Freixial,Arrabal] ou café biológico.”

Rafael quer ainda usar o Ateliê do Rapaz para levar os produtos regionais a mini-eventos;aniversários e brunches, por exemplo.