Editorial
Quando a memória se perde
Talvez a maior tragédia das demências seja a solidão que provoca, não só no doente, mas também em quem o rodeia
O tempo das demências não se conta nos relógios. Conta-se em lapsos: um rosto que se dissolve, uma palavra que foge, um nome que nunca mais regressa. A doença de Alzheimer, por exemplo, é uma erosão discreta que começa por apagar pequenos momentos e, sem cerimónia, leva com ela as gavetas da memória, deixando os doentes a habitar universos próprios, onde o presente já não faz eco do passado.
Por cada diagnóstico, surge uma legião de familiares que nem sempre, ou quase nunca, está habilitada e preparada para viver e conviver com o novo desafio. São filhos, companheiros, netos - cuidadores cansados que vêem inverter-se os papéis da existência. O desgaste físico e emocional prolonga-se, muitas vezes, por anos: noites em branco, rotinas exaustivas, paciência sem limites.
Na ausência de infra-estruturas suficientes para as necessidades, como se pode inferir do trabalho de abertura deste jornal, a resposta recai quase sempre nos ombros dos familiares, transformados, de súbito, em especialistas da compaixão. Os poucos locais de apoio que existem, como a Unidade de Cuidados Continuados Bento XVI, em Fátima, vivem à beira da lotação máxima.
Ainda assim, é em unidades como esta que se encontram profissionais exímios em devolver dignidade e serenidade. Psicólogos, enfermeiros, terapeutas, auxiliares: são eles que ensinam a olhar nos olhos do doente, a perceber que, mesmo sem memórias recentes, cada pessoa carrega um universo de experiências que merece respeito. São esses gestos simples - uma palavra calma, um toque na mão, uma escuta paciente - que desafiam o esquecimento.
Talvez a maior tragédia das demências seja a solidão que provoca, não só no doente, mas também em quem o rodeia. Por isso, enquanto houver quem partilhe um café, quem se sente ao lado de quem sofre num “Café Memória”, quem insista em compreender e dar pistas para lidar com quem perde o próprio tempo, como acontece em Pombal, vale a pena manter a esperança. É urgente, porém, construir mais do que apenas esperança. É urgente criar uma rede de apoio que seja verdadeira casa, que permita aos pacientes e cuidadores continuarem juntos a lembrar que o sentido da vida resiste, mesmo onde a memória se perde.