Opinião

Polissemias amorosas

31 jul 2025 08:01

Lembrei-me desta confusão de garoto quando me apercebi que nos últimos tempos se banalizaram as referências a “amor”

A polissemia é uma parte divertida de qualquer língua. Sabemos que a mesma palavra pode ter múltiplos significados, dependendo do contexto e muitas vezes nem ligamos. Dizer “letra” já não me faz levantar o olhar e não duvido se se refere a um carácter tipográfico ou ao poema que acompanha uma melodia.

Não me deixa confuso o “cabo”: nunca tentei encaixar um militar numa entrada USB nem tampouco quis varrer o chão agarrando um fio. Nem sequer polissemias mais originadas pelo calão – a “dama” que sai da corte ou das cartas para objeto de galanteio, ou a inominável versão feminina de uma palavra usada para “garoto”.

Mas de vez em quando há umas que desafiam a lógica e me apanham na curva. Quando era garoto, ouvia a minha avó dizer que alguém tinha “morrido apaixonado”. A minha mente imaginava que, certamente, era alguma Julieta que tinha fenecido desgostosa por algo que o seu Romeu tinha feito. Achava estranho que a minha muito crente e devota avó soubesse tanto sobre amores sofridos, mas também nunca questionei. Só anos depois aprendi que paixão podia significar “grande desgosto”, significado motivado pela “paixão de Cristo”, a curiosa expressão que designa o sofrimento e martírio até à crucificação.

Lembrei-me desta confusão de garoto quando me apercebi que nos últimos tempos se banalizaram as referências a “amor”. Desde merchandising que pede “mais amor por favor” a troco de uns quaisquer 20 euros, a festivais que “são amor”, até situações que constituem “bolhas de amor”. No início, achei que era uma forma de explorar a polissemia da palavra (só na definição do dicionário Priberam aparecem 12 significados): afinal, um festival podia ser algo “suave ou delicado”, uma bolha podia ser uma situação “muito positiva ou agradável”, e pedir mais amor podia ser uma solicitação por uma “ligação intensa de carácter filosófico” (embora me questionasse porque é que isso custava 20 euros sem recibo).

Até que percebi que, afinal, era só uma palavra trendy. Uma hashtag ótima para ilustrar publicações inspiradoras no instagram – preferencialmente cheias de felicidade tão artificial como as fotos carregadas de filtros – mas absolutamente desprovida de significado. Afinal, repetir à exaustão uma palavra retira-lhe o seu significado, o que é especialmente grave quando estamos a falar de afetos e de fazer bem ao outro. Por isso, quero iniciar aqui o movimento “Menos amor (falso), por favor”: mais literalidade e mais verdade na expressão do Amor. Vamos salvar coisas especiais?

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990