Opinião

Letras | José Carlos Barros (2022), As Pessoas Invisíveis OU a sucessão dos acontecimentos…

18 out 2022 11:30

Romance com descrições de paisagens em que a parte técnica e meticulosa se alia à poetização dos lugares

José Carlos Barros (n. 1963) venceu o prémio Leya 2021, com As Pessoas Invisíveis, publicado este ano, porém já conta com dois romances anteriores – O Prazer e o Tédio (2009), adaptado ao cinema, e Um Amigo para o Inverno (2013, finalista do prémio Leya em 2012).

Autor de vários livros de poesia, entre eles: O Uso dos Venenos (2018, 2.ª ed.); A Educação das Crianças (2020); Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989 (2020); Penélope Escreve a Ulisses (2021), formado em Arquitetura Paisagista, é transmontano, a viver e trabalhar no Algarve: dados biográficos breves, mas infiltrados no seio da escrita deste último romance, com descrições de paisagens em que a parte técnica e meticulosa se alia à poetização dos lugares.

A primeira dúvida que se pode colocar ao leitor é se a designação ‘romance histórico’ pode ou não rotular este livro. Embora o autor, em nota inicial, afirme: “A presente ficção […] não se baseia em factos reais e não tem a ver com o massacre de Batepá nem com as ocorrências desse mês de Fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe.” (opus cit., p. 7), facto é que esse será o fio nuclear do romance, oscilando os acontecimentos entre o caderno encontrado em 1980, em Berlim, com informações sobre as potencialidades auríferas do Vale das Freitas, e a personagem Xavier Sarmiento, habitante do lugar de Vilarinho desde os anos 40, na solitária casa do Alto do Barco de Pedra, quando se revela o seu ‘dom curativo’, que o faz ambicionar o poder: “[…] E então intuiu a possibilidade de um poder que ninguém aprendera ainda a usar e de que talvez os milagre da Santinha não fossem senão uma das múltiplas manifestações. Isso interessava-lhe. E começou a exercitar a mente. […]” (p. 69).

Mas, embora Talvez não houvesse milagres (pp. 74-78) e A verdade não leve a lado nenhum (pp. 79-80), e sem compreender como é que o tempo mexe os cordelinhos (p. 99), Xavier Sarmiento – que tinha morto Luciano, o tio da Santinha, e com ela tinha fugido – figura como cabeça de cartaz em espetáculos circenses de magia e é vítima de vingança. Para fugir a todo este passado, e ajudado pelo doutor Fagundes, Xavier viaja até à Ilha da Província, onde é recebido pelo engenheiro Arnaldo Magalhães: a sua vida irá recomeçar e tornar-se-á imprescindível num meio em que as hostilidades entre a administração e os nativos se agudizam cada vez mais. É a partir daqui que os dados históricos daquilo que ficou registado como o massacre de Batepá, em fevereiro de 1953, na ilha de S. Tomé e Príncipe, se vão ficcionalizar na intriga central. Com os nomes históricos do governador e sua entourage devidamente alterados, apenas as intervenções políticas de Salazar e Marcello Caetano, com posições divergentes, podem ser linhas de um ‘romance histórico’. Álvaro Lince é encarregue por Salazar para se deslocar até à província ultramarina, e fazer, enquanto inspetor, um relatório dos acontecimentos – Representar um papel (p. 193).

[…] O que mostrar e esconder desses dias em que se precipita uma longa história de trabalho escravo. O que contar da violência e da arbitrariedade. Do campo de concentração de Fernão de Magalhães. Da tortura em cadeiras elétricas na Cadeia Civil. Das celas improvisadas onde se morria por falta de ar. Dos desmandos de Xavier Sarmiento.  […]  O azul das águas da baía entra pela janela e Álvaro sente uma náusea, como se fosse uma marioneta a quem puxam os fios para representar um papel.

Pedro Serrano e Sum Maló serão dois dos bodes expiatórios apanhados na rede dos acontecimentos, transformar-se-ão em função das injustiças de que são vítimas; resistindo ou desistindo, ambos têm um papel fundamental para mostrar ao leitor como cada um de nós – em face das circunstâncias e da sucessão dos acontecimentos – se pode tornar pessoa invisível, como se aceitava que fossem os ‘trabalhadores-escravos’ e a ‘mão-de-obra pública’ de que a colónia/província tanto necessitava. O Governador da Ilha da Província é chamado à Metrópole, enquanto se lhe prepara uma condecoração (p. 261), e o paradeiro de Sarmiento, o ‘homem-de-mão’ do Governador, permanece incerto…

É de regresso a dezembro de 1980, com a notícia do acidente de avião em que falecem Sá Carneiro e o ministro da Defesa, de novo em Vilarinho, que o novelo volta a encontrar Manuel, o filho invisível, que Xavier nunca chegou a conhecer, e as ambições com a procura da jazida de ouro, nos terrenos da casa do Alto do Barco de Pedra. Tudo acabará por ficar enterrado e invisível com mais mortes. Sem sentido: a loucura do poder e a loucura da riqueza fácil. No pensamento de Manuel:

[…] Talvez tenha pensado que o destino é quem manda, e que lutar contra ele é uma ocupação inútil. Talvez tenha pensado que não nos livramos dos seus enredados fios. Que somos sempre escolhidos. Que nunca nos é dado escolher. […] (p. 291)