Opinião

Letras | Isabel Rio Novo (2022), Madalena OU o novelo do passado…

19 ago 2022 20:00

Estruturadíssimo e bem alicerçado, marca da qualidade literária a que nos habituou como idiossincrasia estilística

Todos os dias se morre. (Raul Brandão, Memórias)

SE esta é a primeira de três epígrafes a abrir o novo romance de Isabel Rio Novo – Madalena (2022) – vencedor do prémio literário João Gaspar Simões 2016, é igualmente a primeira janela para a ficção de cariz memorialístico, onde o novelo do presente só ganha sentido quando se cruza e tece com/e dos nós do passado.

O registo narrativo na primeira pessoa escancara a segunda janela e dialoga com o leitor sobre as razões que nos levam a apenas deixar assomar à superfície e flutuar, consciente ou inconscientemente, algumas partículas desse passado (Nem como certos vestígios do passado vêm misteriosamente incrustar-se no presente, opus cit., p. 198). No fim deste livro, o círculo é explicitamente (e ironicamente?) desenhado; porém, cada leitor poderá sempre encontrar outras teias: “[…] uma mulher e os seus fantasmas, destinados a sobreviverem e morrerem juntos. Se não fosse uma forma demasiado comum de acabar uma história, repetiria agora. Madalena. Madalena.” (p. 199).

Estruturadíssimo e bem alicerçado (marca da qualidade literária a que nos habituou como idiossincrasia estilística), o romance é constituído por um total de 21 capítulos, que o leitor poderá distribuir por categorias, sugeridas pelos seus títulos. Como sempre, os dados do meta-romance – Princípio, pp. 11-15 e Fim, pp. 197-199 – em que o eu identifica dois objetos como ícones do novelo do passado: a fotografia de um antigo namorado e o armário livreiro em carvalho, herança do bisavô Álvaro Amândio, onde se encontram os livros, cartas e fotos que permitirão a reconstituição de uma experiência não vivencial da parte da narradora.

Depois a “história” digna e sofrida, angustiada, esperançosa, titubeante, do eu que vai avançando sobre os dados científicos, objetivos e psiquicamente ultrajantes do seu cancro de mama, desde a descoberta inicial, passando pelos tratamentos e a cirurgia, até ao desenvolvimento de metástases com a morte que se aproxima, durante cerca de um ano e meio – Outubro, pp. 17-28; Novembro, dezembro, pp. 33-48; Janeiro, pp. 51-59; Fevereiro, março, abril, pp. 67-78; Maio, pp. 83-99; Junho, julho, pp. 105-118; Agosto, pp. 125-134; Ainda agosto, setembro, pp. 143-151; Setembro, outro outubro, outro novembro, pp. 157-170; Outro dezembro, outro janeiro, pp. 177-195 – numa cronologia calendarizada pela doença. Porém, o leitor percebe que apenas as fugas através da memória e da ficção/imaginação do novelo do passado permitem ao eu continuar vivo e a escrever sobre o presente que tece.

Uma das teias, ou viagens do eu, será, precisamente, intercalada neste calendário mensal e tem a ver com a “história dentro da história” da relação apaixonada e trágica entre o bisavô (dono do armário de carvalho) e sua mulher, Madalena Brízida – Viagem (parte um), pp. 29-32; Viagem (parte dois), pp. 61-66; Viagem (parte três), pp. 79-81; Viagem (parte quatro), pp. 119-124; Viagem (parte cinco), pp. 135-141; Viagem (parte seis), pp. 171-175. A diferença entre as reminiscências já encontradas anteriormente e ao longo de toda a “história” do eu é que, se aquelas correspondem a transcrições das cartas encontradas ou citações dos livros e visualizações das velhas fotografias, agora o eu assume claramente a ficcionalização de Madalena como protagonista: “A primeira vez que avistei Madalena Brízida ela era uma menina de seis anos, pálida e franzina.” (p. 29)

A teia onírica ocorre por três vezes – Sonho número um, pp. 49-50; Sonho número dois, pp. 101-103; Sonho número três, pp. 153-155 – mostrando que o inconsciente do eu liga a sua vida à evocação iconográfica da bisavó Madalena: na infância (5º cap.); na fantasiosa alegria eterna da juventude (11º cap.); na visita ao museu e às obras de arte, alento e refrigério das dores da vida adulta (17º cap.).

Se o novelo parecia emaranhado, o eu feminino – cujo nome o leitor fica sem conhecer – teceu-o perfeitamente: Penélope a tentar fugir da morte pela memória, pela ficção e pela arte. O livro Madalena fez-se…